CHAPTER TWELVE, MONDAZE

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      Apesar de estar despedaçada, ainda tenho um resto de força para lembrar de meu aniversário. E considero um presente, ninguém ter morrido hoje. Pelo menos por enquanto.
      Edmond ainda dorme, e prefiro não acorda-lo do que me parece um sono tão sereno. Antes de pisar no chão, me detenho com os pés no ar.
      Quando eu era criança, minha mãe me dizia para colocar os pés no chão apenas quando o mundo fosse melhor. Era uma brincadeira boba. Ela me mandava imaginar um lugar no qual tudo fosse perfeito, sem problemas, sem morte. Onde tudo era feliz e calmo. Eu só poderia colocar os pés no chão, se conseguisse imaginar, pois, segundo ela, assim que eu o fizesse, estaria pisando nesse mundo perfeito, e nada poderia me ferir.
      Só consigo pensar no passado, na vida que eu tinha antes de estragar tudo. Imagino meu pai na estufa, colhendo ramos e mais ramos verdes. Penso em minha mãe no sofá da sala, desfrutando de uma taça de vinho enquanto devora algum livro. Imagino ambos no jardim, dando uma força para o senhor Nighy, arrancando algumas ervas daninhas.
      Pobre senhor Nighy, que deve estar perdido, desempregado. Não só ele, mas também os outros empregados. Será que ele sente minha falta? Eu costumava causar muitos problemas para ele, mas também sempre ajudava em alguma coisa ou outra no jardim. É estranho pensar que as flores devem estar todas mortas, sem cuidados, abandonadas.
      Me levanto, finalmente, notando a lamparina apagada.
      Na cozinha, me obrigo a comer algo, bebericando uma xícara de chá. Como único lembrete de meu aniversário, posiciono uma margarida em cima do pedaço de torta, e imaginando uma vela acesa, sopro as pétalas pálidas.
      — Feliz aniversário, Cisna — sussurro.
      Quando Edmond me chamou de Cisna, não achei que era sério, mas aparentemente o nome agora está vinculado à minha nova vida.
      — Por que não me contou? — ele surge atrás de mim, esfregando os olhos como que para acordar de vez.
      E lá se vai o meu segredo.
      — Não queria incomodar — digo sem muita alegria, antes de colocar um pedaço de torta na boca.
      Não sei se é Daphna a pessoa por trás da torta vermelha que me deixa extasiada, mas se for, devo à ela um abraço apertado. O sabor se espalha pela minha língua como ambrosia, e por um momento, esqueço dos meus problemas.
      — De todas as situações em que me meteu, seu aniversário é a menos letal até agora — sinto a amargura contida em sua voz.
      — Eu sinto muito, Edmond. Por tudo.
      Eu realmente sinto, mas infelizmente, dizer isso não vai mudar o que causei. Minhas desculpas não podem ressuscitar pessoas.
      — Me desculpe por ter ficado bravo com você — sinto sinceridade em suas palavras. — Ainda estou tentando entender tudo o que aconteceu. Sinto muito por seus pais. Não sabia como contar...
      — Tudo bem, eu entendo.
      Cutuco a torta com a colher prateada, sem conseguir encarar Edmond. Só consigo pensar em como seria se eu tivesse avisado meus pais, se não tivesse tentado bancar a vigilante no telhado.
      — Cisna, ontem Falena trouxe algumas notícias — ele diz, claramente escondendo uma informação importante. — Mas... simplesmente não entendo.
      O encaro, fazendo um sinal para que continue.
      — Ainda não podemos afirmar nada, mas aparentemente há pessoas que simpatizam com a sua situação — ele despeja.
      Pelo modo como fala, parece que sou alguém com uma causa. Mas tudo o que faço é correr, apenas luto para não ser esmagada pelas consequências de minhas decisões. Não tenho uma causa. Isso não é um filme de ação.
      — A floresta está dividida entre os que te caçam, e os que te apoiam — ele tenta explicar, comento um biscoito. — Há pessoas atrás de você, a maior parte da floresta planeja te entregar para o assassino. Mas há uma pequena porcentagem, que é contra a sua perseguição. Eles acreditam na sua inocência.
      — Como acreditam em algo que não sabem? Eu nunca me defendi para ninguém, fora você e as meninas.
      — Bom, a fronteira não para a fofoca, Cisna. Eles ouviram sobre o incêndio e o caos no vilarejo. Acreditam que você teve motivos para quebrar a aliança, e até onde eu sei, estão parcialmente certos. Não estão? — Edmond indaga com uma faísca de dúvida.
      — Você sabe que sim — afirmo. — Eu não pensei direito na hora... Mas também não podia ficar.
      — Certo — agora, há preocupação no modo como fala. — Mas não é só isso.
      Ele fica em silêncio por um longo tempo, decidindo se vai ou não me contar o que está acontecendo.
      — Algumas pessoas estão comentando que as mortes no vilarejo não cessaram — diz finalmente.
      Me engasgo com o chá.
      — Como? Não há como ele ou ela atravessar a fronteira todos os dias. Não faz sentido algum. Tudo bem, existe o caminho pelo santuário. Mas oscilar de um lado para o outro, apenas para matar? Não. Não entendo.
      — Eu disse a mesma coisa quando Falena me contou. E é por isso que penso... que você não foi seguida. — ele faz uma pausa enquanto apoia a cabeça nos dedos cruzados. — Existe a possibilidade de alguém da floresta estar fazendo tudo isso.
      Desisto da torta e do chá, os colocando de lado enquanto escuto atônita.
      — Para me culpar — concluo. — Assim as pessoas ficam contra mim pela quebra da aliança, e pelas mortes que elas acham que causei.
      Minha cabeça parece prestes a explodir. É genial. Incrivelmente desumano, mas genial. Quem mataria pessoas para simplesmente culpar alguém? É diabólico. E eu já odeio essa pessoa com todas as minhas forças. Ela colocou uma corda em meu pescoço, e a cada corpo que aparece na floresta, a corda só fica mais apertada.
      — Também descobriram o corpo de Clément — ele solta a bomba sobre minha cabeça.
      — Como? Você não o tinha enterrado? — disparo, e logo percebo o quão ruim minhas palavras soam. — No que eu te meti... Sinto muito, de verdade. Eu...
      — Está tudo bem, fique calma — ele diz, apesar do clima extremamente pesado. — Eles pensam que foi um dos ataques da Ouroboros, antes dos Stallent — há dor em suas últimas palavras.
      Demoro um pouco para entender à quem ele se refere. Apesar do símbolo, nunca pensei em chamar o assassino ou assassina pela marca registrada. Por um momento me questiono sobre como Edmond sabe sobre a cobra que devora a própria cauda, mas descarto o pensamento ao me lembrar da noite em que quase fui expulsa por ele, quando tive de contar sobre minha fuga e explicar quase tudo. E também há os rumores que ligam os dois lados. Não seria surpresa se meu nome for do conhecimento de todos em alguns dias.
      — Certo, mas o que eu faço com toda essa... informação? — pergunto, mais confusa que o normal.
      Sinto que devo agir. Me mover. Usar tudo isso para algo, mas o quê? Como posso fazer qualquer coisa, estando escondida como um rato? Mas o que eu posso fazer? Não é como se eu pudesse sair por aí sem correr risco de vida.
      — Nada — conclui. — Só achei que você precisava saber. Ainda estamos pensando em como vamos agir. Falena e Daphna estão estudando o território, descobrindo quem tem interesse em te matar, e quem está disposto a te ajudar.
      — Acha que podemos contar com alguma ajuda? Alguém que nos dê cobertura?
      — Cobertura? Depende, para que exatamente?
      — Não sei, até descobrirmos quem é a Ouroboros, e quem realmente está matando as pessoas na floresta. Ou se são a mesma pessoa. Não sei — digo aflita, sem entender minhas próprias palavras.
      Edmond encara a flor no prato, ao lado das migalhas de torta, e parece se lembrar de algo importante.
      — O que foi? — pergunto curiosa, porém com medo de saber.
      — Não, não é nada — ele responde, balançando a cabeça como que para afastar a ideia.
      No sofá estofado de veludo, rumino as frases de Edmond. Se sua teoria estiver certa, há alguém matando a sangue frio pessoas inocentes, apenas para alimentar o ódio que as pessoas da floresta já sentem por mim. Também penso nos que supostamente me apoiam. Acredito que seja apenas pena, não que eles exatamente torçam por mim. Acho que sentem dó da garota que teve a casa queimada e está sendo perseguida pela morte. Porque de certa forma, estou mesmo. Me lembro da frase que Falena disse ter visto na porta dos Stallent: "Entreguem a ratazana de armadura". Uma menção clara à garota que carrega centenas – ou mais – de pintas na pele, e se esconde como um verdadeiro rato. Uma menção clara à mim.
      Particularmente, penso que aniversários são só um jeito gentil de lembrar que você está um passo mais perto da morte. Mas com toda essa nuvem caótica ao meu redor, me agarro a ideia de uma comemoração silenciosa.
      Passo meus dedos pelo veludo bege do sofá estofado, esparramada como um gato manchado. Estou usando um dos vestidos que ganhei. Ele é um pouco mais acinturado que o outro, e não possui mangas. O tecido é verde e fofo, fazendo com que eu me sinta coberta de musgo fresco.
      — Parabéns — Edmond pula no sofá com um buquê de flores, e me encolho para que ele possa se sentar.
      Demoro um tempo para entender, mas pego o conjunto de narcisos e lírios de suas mãos. O cheiro adocicado logo invade minha alma e se instala em algum lugar do meu coração. Não esperava ganhar nenhum presente de aniversário. Não ter nenhuma morte nas costas hoje já estaria de bom tamanho, mas aceito de bom grado as pétalas delicadas que apalpo com cuidado.
      — Obrigada — agradeço, banhada na alegria que resiste em meio à tragédia. — Não precisava me dar nada. Já fez mais por mim do que eu posso agradecer. Sempre estarei em dívida com você.
      — Não foi nada, tenho certeza de que já foi presenteada com flores melhores — ele toca um dos lírios, que está com uma pétala ligeiramente ferida.
      — Na verdade, nunca ganhei flores em um aniversário.
      — Como? — sua dúvida transborda, ele está confuso. — Como vocês presenteiam as pessoas no vilarejo?
      Não entendo sua pergunta muito bem. Ele nunca foi à um aniversário?
      — Coisas. Desde um colar até um abraço — tento explicar.
      — E as flores?
      — As flores também são presentes. Mas normalmente elas fazem parte da decoração.
      — Elas não são o principal?
      — Como?
      Edmond parece falar outra lingua. É como se não falássemos o mesmo idioma, e mesmo assim tentássemos nos comunicar. O choque cultural é doloroso.
      — Nos aniversários, as flores são os únicos presentes, porquê elas morrem — ele tenta explicar. — Elas secam, como... o sentimento. Entende?
      — Não — confesso.
      — O aniversário dura um dia, apenas. Assim como a maioria das flores após colhidas. Elas são presentes sinceros, pois perduram na alegria do evento, e no outro dia o esquecem. É... — Edmond procura as palavras certas.
      — Simbólico — completo.
      — Acho que sim — diz, um tanto pensativo.
      — Bom, acho que nunca fui presenteada com algo tão nobre — tento anima-lo. — Obrigada, de verdade.
      — Ao seu dispor, senhorita Cisna — ele tira um chapéu invisível da cabeça, curvando-se de leve.
      — Cisna — repito, transbordando de riso. — Não sei se consigo me acostumar.
      — Garanto que o seu nome verdadeiro não chega aos pés do que eu criei — provoca, exibindo um sorriso malicioso.
      — Discordo. — É tudo que digo.
      Edmond deixa que o sorriso se desfaça nos lábios rosados. Acho que ele tinha um pingo de esperança que eu revelasse meu nome. Me sinto mal por desaponta-lo, mas também me sentiria mal se jogasse ao vento minha preciosa lembrança de casa.
      — Então, quantas voltas em torno do sol, Cisna? — ele faz um certo esforço para mudar de assunto. — Ou vocês não contam os anos? — a ironia inunda seus olhos verdes.
      Repito a frase várias vezes na minha cabeça: Quantas voltas em torno do sol? Quantas voltas em torno do sol? Quantas voltas em torno do sol?
Acho simplesmente genuína, a forma como ele transformou uma pergunta em um poema. Algo nas entrelinhas da frase me deixa feliz, sem motivo algum.
      Mas antes que eu possa responder, Falena e Daphna invadem a casa, inundando o espaço com sua presença, que irradia alegria e exala um cheiro de alecrim e rosas, me deixando zonza ao sentir o cheiro enjoativo e viciante. Espero que tenham boas notícias desta vez.





Forest Embers and Rooting Souls - FEARS (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora