Não creio que tenha sido seguida até a floresta, caso contrário estariam procurando por outra pessoa do vilarejo, e não somente atrás de mim. Porém Edmond continua preocupado durante o caminho de volta, sei que apesar de tudo, ele também tem certa dificuldade em confiar na minha pessoa.
Conforme caminhamos pela trilha, o trajeto vai ficando menos perigoso, sem espinhos ou árvores tão próximas. Demora uma eternidade até que eu veja pessoas além de nós, vagando entre as folhas, subindo em galhos altos para colher alguma fruta, ou simplesmente descansando no musgo do chão.
Reparo que a maioria das mulheres usam tecidos leves, sempre com flores no cabelo e algumas delas descalças, uma ou duas com véus finos sobre o rosto, enquanto a maioria dos homens usam capas pesadas, como eu e Edmond.
Alguns metros à frente, tenho o vislumbre de duas garotas albinas brilhando sob a luz filtrada pelas árvores, ambas ajoelhadas na grama úmida, enchendo suas cestas de flores. Uma delas, vestida de amarelo, com violetas e margaridas na cabeça, me encara com os olhos rosados, os traços suaves do rosto pálido me acompanham enquanto passo, e o cheiro agradável de alecrim fica impregnado no meu nariz. Edmond as cumprimenta rapidamente, sem deixar que os pés parem de se mover. É tudo como um grande mito grego, com as ninfas e as graças vagando entre as árvores, com flores penduradas pelo corpo.
— Quem são aquelas duas? — sussurro debaixo do capuz.
— As irmãs Troquett? — diz sem entonação.
— Não sei, me diga você.
— Falena é a mais velha, ela não é muito diferente de mim na personalidade, mas Daphna, a de amarelo, é meio... doida — ele explica, alguns passos na minha frente. — Elas e a mãe são minhas clientes.
Clientes? Todo esse tempo e eu sequer perguntei sobre seu trabalho, ou sua família, ou qualquer coisa. Qual é o meu problema? Estou hospedada e confiando em uma pessoa que mal conheço. Mas ele também não sabe muito sobre mim, o que de certa forma iguala a balança.
— Clientes? — interrogo.
— Ah, sim. Sou eu quem cura os enfermos da floresta. Eu receito os chás e preparo os destilados de ervas como poções. Era o que meu pai fazia, na verdade. Eu só observava, até que precisei aprender.
— Como um médico — observo, me lembrando da mãe de Eden e da estufa de meu pai.
— Mais para boticário — me corrige.
— Meu pai gostava de mexer com chás e remédios, ele não confiava muito em hospitais, preferia a medicina antiga, natural e pura.
Edmond se tranca em um silêncio desconfortável. Tardo a perceber meu erro, falando de meu pai no passado, como se ele estivesse morto, o que é bem provável, mas também infundado. Não haviam cadáveres, e prefiro que sofram o inferno em vida, pensando que perderam a filha, à perde-los para a morte. Confuso, conflitante, é horrível, não saber se eles estão lamentando ou sendo lamentados.
— Mas, e seus pais? Você não fala deles. Moram por perto? — me sinto intrometida, mas não hesito.
— Minha mãe morreu quando eu nasci, e meu pai se juntou a ela algumas primaveras atrás — despeja as palavras ao vento, conformado com a perda. — A capa que está usando, era dele.
Seguro o tecido pesado que me protege, esfregando os dedos na maciez gostosa. Me pergunto se Edmond teve coragem de apagar o pai das fotografias, ou se deixou o tão conhecido rosto gravado no papel.
— Sinto muito, Edmond. Eu não devia... Me desculpe, eu não sabia...
— Não precisa — ele me corta. — Você não tem culpa de nada. Na verdade, eu já tinha me acostumado com a casa vazia. Mas você me lembrou de como é ter alguém por perto, mesmo que esse alguém seja uma garota egoísta que pode me arrastar com ela para o túmulo.
Mereço sua raiva, afinal, nada do que ele falou é mentira, eu fui egoísta ao deixar o vilarejo, e eu matei uma pessoa, boa ou má, com o corpo ocultado ou não, eu matei alguém. Se me descobrirem aqui, não vou morrer sozinha pelos meus crimes, ele está envolvido nisso por minha culpa. Vou precisar conviver com o fato de que estraguei tudo, é inevitável, já aceitei esse fardo. Não posso voltar atrás e pensar com mais calma sobre cruzar a fronteira, não é tão simples.
Edmond escolheu me ajudar, então preciso que isso dê certo, mesmo sem saber que plano estou seguindo.
— Dizem que os melhores segredos são guardados nos túmulos — tento dissipar a nuvem pesada que paira sobre nós.
— Então seremos nossos próprios segredos, maiores que qualquer palavra não dita que se esconde no cemitério da floresta — um minúsculo sorriso finalmente aparece nos lábios rosados.
Na casa que mais parece um jardim, imploro para que Edmond me ensine mais sobre as ervas e poções. Nunca me interessei muito quando meu pai me chamava para ajudar na estufa, fiz alguns chás durante um tempo, mas logo desisti, me faltava paciência e vontade, por ser algo tão comum em casa. Mas a alquimia de Edmond é diferente, sofisticada e cutuca minha curiosidade com unhas pontudas. Me sinto mais próxima de meu pai, enquanto ele me ensina.
Ele me introduz ao seu trabalho, mostrando uma pilha de livros sobre combinações e seus efeitos, todos recheados de símbolos e desenhos feitos à mão. Mas antes que possa explicar sobre as plantas venenosas e seus perigos, três batidas na porta me jogam no poço do desespero.
Não estou disfarçada, muito pelo contrário, meu cabelo roça a cintura, solto como um pássaro, e a roupa larga que uso como vestido não faz muito por mim, com as pernas pintadas à mostra, pareço um dálmata encurralado.
A casa possui janelas de vidro colossais, mas as pequenas árvores e arbustos de flores me ajudam. Edmond praticamente me joga sobre a mureta que cerca o lago de ninféias, e a água gelada me engole até a cintura. Me encolho, escondida abaixo da mureta, congelando de frio entre as flores aquáticas. Com a água até o pescoço, ajoelhada nas pedras lisas que forram o lago, me limito a escutar o que acontece meio metro acima de mim.
— Cadê ela? Onde você a escondeu?
— Quem? Falena, o que está acontecendo? — Edmond interpreta a mais pura inocência.
As vozes são abafadas, mas não preciso ser muito inteligente para entender que sou o assunto que molha suas línguas.
— Pode parar, Emrel. Eu vi a garota naquela árvore, e nós duas a vimos hoje.
— Edmond, por favor, diga que não está se arriscando dessa maneira — a voz me soa familiar.
— Eu juro — mente —, não estou entendendo. O que eu fiz?
Edmond tenta impedir, mas logo as duas o vencem e começam a vasculhar o jardim mobiliado no qual ele mora. Elas contornam o lago apressadas, e meus olhos capturam o rápido momento em que elas passam por mim, brancas como papel dos pés à cabeça, os olhos claros se curvando à luz do sol que agride sua visão. Uma veste um vestido amarelo, a outra escarlate, ambas com flores por todo o corpo. As mesmas irmãs que colhiam ervas mais cedo na floresta, as mesmas que espantei sem querer com a caveira da maçã que escapou por entre meus dedos.
Daphna e Falena.
Fico imóvel na água, torcendo para que não me achem enquanto Edmond passa pelo lago, encontrando meus olhos em um desespero mudo. Mas nem o silêncio me salva das duas irmãs, que me alcançam através dos vãos da mureta.
— Parabéns, Edmond — diz a de vermelho, puxando meu cabelo. — Você acaba de botar a corda no pescoço.
Falena alcança meus braços e me puxa para cima com a ajuda da irmã. Eu me agarro na mureta, caindo para o outro lado, as costas molhadas no pedaço de chão livre da vegetação.
— Daphna, Falena, por favor, me deixem explicar. — Edmond corre até nós.
O sol aquece meu corpo estirado no chão, duas vezes mais pesado pela água que forma uma poça ao meu redor. Misericórdia não é algo que Falena parece ter, mas Daphna esboça certa empatia por nossa explicação corrida e cheia de lacunas.
— Por favor — suplico. — Ele não tem culpa de nada, se quiserem gritar para todos ouvirem que estou aqui, pelo menos poupem Edmond, ele só estava tentando me ajudar.
— Você tem alguma noção do que está fazendo? — Falena dispara. — Você envolveu Emrel nos seus crimes! Como diabos espera que te ajudemos!? Você não passa de uma Muschrad.
— Não a chame assim! — A voz de Edmond é como um soco no estômago. — Eu escolhi me envolver, sou tão culpado quanto ela. Se quiserem me mandar para a forca, mandem! Mas não se esqueçam que eu não hesitei quando precisaram da minha ajuda.
— Não, Edmond — Falena se aproxima. — É diferente. Você não nos ajudou com um cadáver.
— Mas ajudei com o veneno que o matou!
Congelo, estarrecida com as palvras que chicoteiam meus ouvidos. Edmond ajudou a matar alguém? Foi por isso que me ajudou, por remorso? As irmãs não tentam negar na minha presença, e então entendo que Edmond me ofereceu um trunfo.
— Acha que tivemos alguma escolha? — Daphna berra.
— Acha que ela teve? — ele retruca.
— Sou tão vítima quanto vocês — uma mistura de raiva e tristeza me corrói. — Nenhuma de nós teve escolha antes, mas agora vocês podem escolher. E me lembrarei da história do veneno, caso precise.
Daphna se contorce de raiva, com os punhos fechados ao redor de uma flor de jasmim. Ela me examina com nojo, recebendo cada palavra como um tiro no pé. Conhecê-la nessas circunstâncias é triste, porquê pensei que talvez pudesse ter sua amizade um dia, mas agora vejo que não é tão simples.
— Não vamos contar para ninguém, têm nossa palavra — Falena começa. — Mas também não vamos ajudar.
— Obrigada — agradeço. — Prometo não dizer nada sobre o veneno.
Daphna mal espera a irmã, e sai batendo a porta com desprezo. Falena vai atrás dela, e ao sair da casa, me viro para Edmond, que parece pensar em algo.
— Acha que podemos confiar nelas?
— Nós quatro dividimos esse patíbulo, se um for enforcado, os outros também são. — Ele vai até a janela, observando as duas desaparecendo na floresta.
— A história do veneno, vai me contar? — me sento na mureta.
— Elas tinham um padrasto, o canalha tentou diversas vezes machucar Falena, mas a irmã sempre a protegia, já que a mãe não tinha coragem. Então um dia ele foi para cima de Daphna, Falena e a mãe não estavam em casa, e ela não conseguiu se defender sozinha... — Edmond continua de costas, olhando pelo vidro. — Foi a gota d'água. O rastro de podridão começou a seguir cada passo do desgraçado, e as duas buscaram a minha ajuda. Elas enveneram a comida com oleandro durante dias, observando enquanto morria aos poucos.
Não consigo imaginar a fúria de Daphna, ou como foi passar por tudo isso, mas sei que não foi bom ou fácil. Meus pais nunca tocaram um dedo em mim, da forma como ela fora tocada, e tudo o que posso fazer é agradecer.
— Sente remorso?
— Não. Daphna vai ter que conviver com traumas para o resto da vida, não sinto remorso por tê-la ajudado. Agora nem ela, nem a irmã, nem a mãe precisam ter medo daquele nojento.
Escuto parada como uma estátua, meu cérebro em conflito entre a confiança e a falta dela. Olho para a minha própria cicatriz, imaginando o tamanho da que as duas irmãs possuem dentro de si. Acho que não sou capaz de desvendar esse mistério.
Ainda perto da mureta, empurro Edmond no lago, como ele fez comigo mais cedo, e ele sequer tem tempo para entender o que está acontecendo. Sei que foi sua melhor tentativa de me esconder das duas irmãs, mas jogar alguém na água não é muito legal.
— Por que você fez isso? — ele pergunta, emergindo da água.
Observo suas roupas molhadas, o cabelo grudado no rosto, a expressão de confusão estampada em sua cara, e não consigo evitar um sorriso fraco.
— Digamos que agora estamos quites.
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Forest Embers and Rooting Souls - FEARS (Concluído)
Fantasy🏆 VENCEDOR DO WATTYS2020 NA CATEGORIA YOUNG ADULT🏆 PLÁGIO É CRIME (ART. 184 DO CÓDIGO PENAL). CRIE SUA PRÓPRIA HISTÓRIA UTILIZANDO SUA CRIATIVIDADE. caso saiba de qualquer cópia de trechos ou mesmo da minha história completa, por favor, me avise e...