Capítulo 01 - Jaspis

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Nem mesmo o pesado manto de proteção impedia a pele de Jaspis Suralah de arder sob o intenso calor do Ghal - assim é chamado o sol em Valamurk. Para quem acredita, Ghal é a manifestação do próprio Ghaldron, o grandioso deus criador de todo o mundo. Para Jaspis, porém, o calor do Ghal naquele momento é apenas um infeliz atalho para a morte. Recostada em uma grande pedra, ela se protege na única sombra existente em um raio de muitos quilômetros no meio do deserto de Deltrant. Em poucas horas Ghal desceria e daria seu lugar no céu à Illar - como é chamada a lua - e então Jaspis poderia continuar sua viagem. Pra isso ela só precisava se manter consciente e não ser capturada, mas naquele momento ela não sabia se seria mais difícil ignorar os delírios do deserto ou despistar os guardas que a perseguiam há dias. "Talvez eles também sejam um delírio e os verdadeiros guardas já tenham desistido de me seguir.", considerou, tentando enganar a si mesma, mas a crua verdade gritava: aqueles guardas eram os Escaravelhos Dourados, um grupo de elite da guarda real, e eles jamais desistiriam de capturá-la.

Toda essa situação fora decisão dela. Apesar da fome, da sede, do calor, do cansaço, ainda era preferível morrer no deserto a ser capturada pelos Escaravelhos Dourados e ser levada de volta para o palácio onde vivera nos dezessete anos de sua vida. Porque agora, na verdade, ela não só voltaria ao cativeiro, como seria também obrigada a se casar com seu meio irmão, o detestável príncipe Barkan Suralah IV. Ao saber do noivado arranjado, Jaspis desafiara Barkan em combate e prometera aceitar o casamento somente se ele a vencesse, mas seu irmão fora ridiculamente derrotado. Talvez o sultão Barkan Suralah III não tivesse ficado tão enfurecido se tudo isso não tivesse acontecido diante de todos os convidados da grandiosa celebração organizada por ele próprio para anunciar o noivado entre seus filhos. O sultão tinha sido desmoralizado e Jaspis sabia que o próximo passo seria casá-la à força, ou mandar executá-la publicamente.

Então ela fugiu. A fuga já se estendia há tantos dias que ela perdera a conta, mas os guardas não desistiam. Qualquer outra pessoa já teria se perdido e morrido no deserto, mas eles não. Ela sabia que os Escaravelhos Dourados, assim como ela própria, preferiam morrer a dar meia volta e admitir o fracasso da missão, e isso apenas transformava essa perseguição em uma desgraçada disputa de perseverança. Atravessar o deserto de Deltrant já seria uma tarefa árdua para uma jovem sozinha, ainda mais sendo incansavelmente perseguida.

Mas Jaspis Suralah também não é qualquer jovem: na infância ela fora ensinada a cantar, dançar e entreter, mas na juventude aprendera a atuar, persuadir e lutar. Ao desafiar seu meio irmão em sua própria festa de noivado, ela sabia que ele seria obrigado a aceitar, pois, se não o fizesse, a corte poderia considerá-lo fraco. A verdade é que ela já estava decidida a morrer muito antes de desafiá-lo, mas só morrer não bastaria: antes disso ela precisava desestabilizar o poder da realeza, ou pelo menos tentar. "Era o mínimo que eu poderia fazer por minha mãe, por Hajad e... por Ravan...". Sob o manto então ela revelou sua mão direita, em cujas costas brotava uma pequena flor do deserto. Acariciou a flor com a mão esquerda e deu um fraco sorriso.

A lembrança de Ravan era quase dolorosa, pois, conhecendo seu impiedoso pai, ela tinha quase certeza de que ele teria ordenado sua execução. Por outro lado, aquela flor plantada nas costas de sua mão significava o contrário: "É um feitiço bem simples" - dissera Ravan na última vez em que se viram - "Esta flor mágica ficará plantada em sua mão enquanto eu viver e somente eu serei capaz de removê-la". A flor, que lhe fora dada como um presente de despedida ou uma promessa de reencontro, agora era a única pista de que ele ainda pudesse estar vivo.

A flor não foi seu único presente: Ravan também deixou para ela seu cavalo Hajad. Mas, após descobrir os sentimentos de Jaspis, o sultão ordenou que este fosse sacrificado. É tradição queimar os cadáveres para que os espíritos partam deste mundo purificados pelo fogo de Ghaldron. Caso contrário, seus espíritos podem ficar presos neste mundo como almas errantes. Antes que o corpo de Hajad fosse queimado, Jaspis removeu alguns fios de sua crina, fez uma trança fina e prendeu em volta do seu pescoço como um cordão, onde passaria a trazer pendurada a pequena pedra de jaspe que lhe fora dada por sua mãe e que dera origem ao seu nome.

O Relicário de Heróis de Valamurk - O Levante Contra a Aljava do DestinoOnde histórias criam vida. Descubra agora