Senhorita Charlotte

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Enquanto Watson cuidava do casal de traficantes de armas, eu gritava desesperada na amurada. Era óbvio que eu estava fingindo. Quando eu já não aguentava mais ter de ficar por literalmente cerca de dez minutos sendo puxada para dentro e fingir escorregar de novo, o médico saiu dos aposentos do capitão, ao lado de Mariângela e do marido. Ele me cumprimentou com um aceno de mão curto, o que significava que podia parar de atuar. Saltei de volta para o navio quando o capitão agarrou meu braço, em meio a toda a multidão de curiosos ao redor.
— Obrigada, obrigada, não, não precisa se desculpar, no fim tudo deu certo... — disse ao aglomerado de pessoas que foi lentamente dissipando-se, até que todos voltaram a circular pelo navio normalmente.
— O senhor não faz ideia do quão insuportável é ter que aguentar todas aquelas pessoas irritantes... — disse ao doutor Watson quando saí daquele sufoco. Ele riu de meu comentário, e contou-me tudo que havia acontecido dentro do escritório.
"Bem, poderia ter sido pior", pensei enquanto caminhava ao lado do médico pelo barco. Não falei nada naquele momento, minha voz precisava descansar um pouco após ter passado a manhã inteira gritando desesperadamente.
Enfim, depois de tomar um chá misturado com conhaque (preparado por Watson) para recuperar a voz, eu e o doutor partimos para a última suspeita: uma mulher chamada Lina de la Cruz Pérez, jovem, solteira, cubana, pobre, a última mulher do navio a ser investigada.
Era, pelo que dava para saber sobre seu passado obscuro, fugida da guerra pela independência de seu país. Tinha encontrado abrigo no navio e trabalhava na cozinha, foi tudo que a pesquisa e as deduções de Sherlock conseguiram achar ao seu respeito. Watson e eu descemos até a cozinha do navio, chegando lá vimos uma garota, suja e maltrapilha, descascando batatas. Ela apenas dirige um curto olhar com o canto do olho para nós, muda.
Me aproximo mais um pouco, impedindo Watson de vir comigo com um braço. Algo na cubana me parecia familiar. Devagar e com cuidado, digo, secamente:
— Achei que você estava morta.
Ela não mudou de expressão. Continuou completamente parada. A raiva cresceu dentro de mim gradualmente. Cada vez eu aumentei ainda mais o volume de minha voz, quase gritando de tão revoltada:
— VOCÊ FINGIU, THAÍSA? FINGIU PARA MIM ESSE TEMPO TODO?
Finalmente ela resolveu me responder. Virou-se para mim, ainda com uma batata e uma faca na mão:
— Meu nome não é Thaísa, senhora, sinto muito, deve estar me confundindo com outra pessoa.
— EU NÃ O SOU DOIDA, THAÍSA! VOCÊ MENTIU PARA MIM ESSE TEMPO TODO, É ISSO ENTÃO?
Minha raiva tinha aumentado a um nível estratosférico. Ela apertou os olhos, largando as batatas e a faca no chão. Olhei-a no mesmo tom.
— Pode ir embora, Watson. — disse sem olhá-lo — As coisas aqui não vão ficar bonitas.
Pelo som dos passos apressados e da porta se fechando, posso dizer que ele me obedeceu. Thaísa, minha prima que pensei ter sido assassinada pelo próprio marido, estava bem ali, na minha frente.
•••
— Pode começar a se explicar, priminha. — Disse eu, encarando-a com os olhos em chamas.
— Está bem, está bem, Charlotte — disse ela levantando as mãos ao lado dos ombros —, você me descobriu.
Lentamente, ela tirou o seu disfarce: perpassou as mãos no rosto, retirando toda a sujeira sobre ele. Revelaram-se seus traços finos e cruéis, que um dia achei tão belos. Mas, naqueles tempos ela tinha outros olhos, olhos gentis e amigáveis, que me confortavam nos dias tristes e chuvosos. Minha querida prima e rival havia forjado a própria morte... Isso era mais difícil de engolir do que qualquer outra das coisas que já passei.
— Vovó te adorava... Ela achou que você estava morta! Ela se foi por sua culpa! Como consegue viver sabendo disso?
     Minha raiva havia passado do estado estratosférico para algo mais ameno, apesar de ainda senti-la. Thaísa logo me respondeu:
— Eu sempre quis aquele dinheiro só para mim, Charlotte. Por isso que eu planejei contra todos de nossa família, inclusive usei aquela tal de Vera para conseguir apoio em meu plano, para ter tudo só para mim! Ela e seu primo Ignotor acreditaram quando eu disse que papai havia despedido o homem. Isso provocou o ódio do Harperdeen, que fez a maior parte do trabalho para assassinar a todos por mim, junto a sua querida Vera. Ela aceitou que eu me disfarçasse no navio e a ajudasse a te matar, Charlotte, assim que ela teve de fugir dos Estados Unidos com o capitão para esconder seus crimes e os do primo. Quem pilotou o navio e causou aqueles tremores noite passada? Eu, priminha, eu somente. Convenci Vera a me ajudar e disse que dividiria a herança com ela e Ignotor no fim das contas. Planejava traí-los depois, mas agora minha prioridade é me livrar de você, Lotte!
     Ela saltou para cima de mim, sacando um revólver com estupenda velocidade de algum bolso no meio do vestido. Não podia acreditar que ela, Thaísa, minha prima mais querida, estava por trás de tudo aquilo! O tráfico do revólver, a vingança de Ignotor, as intrigas de Vera com nossa família. Tudo foi parte dos planos dela.
      Com uma raiva maior do que dá para se descrever, chutei Thaísa com toda a força no peito. Ela bateu contra a parede, mas não desistiu: lançou-se contra mim com toda a sua energia, imobilizando meus ombros. Apontou seu revólver direto em meu coração, pronta para atirar a qualquer momento.
      Mal sabia ela que, nessa batalha, eu não estava sozinha.
      Sherlock e Watson surgiram pelo portal da cozinha, arrombando a porta juntos. Minha prima olhou para o lado por um momento, distraída. Aproveitei a oportunidade para agarrar seu revólver, socar sua cabeça e jogá-la direto nos braços de Watson. O médico lançou-a para Sherlock Holmes que, habilmente, prendeu seus pulsos com algemas, exclamando:
— Agora, o mundo inteiro está livre de você, Thaísa!
— E nada pode mudar isso — completou o médico, cruzando os braços.
                                          •••
A brisa açoitava meu rosto. Os dois detetives apareceram ao meu lado. Agradeci-os imensamente pela ajuda com aquele caso tão complexo.
— Não há de quê — disse Watson — Sherlock trabalha mais porque quer mesmo.
      O detetive consultor nada disse, fumando seu cachimbo tranquilamente. Encaramos o horizonte. Talvez, eles pudessem fazer uma visitinha ao Brasil comigo quando chegássemos. Agora, Thaísa, Vera, Ignotor e até o capitão estavam todos na cadeia. Nada podia nos parar naquele momento.

                                        FIM

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