PRIMEIRA VISTA
ISAK
Meus pais saíram de viagem, só mais uma das muitas, e isso é particularmente algo maravilhoso. Mas se perguntar à Júlia, duvido que sua resposta seja a mesma. Ela os quer em casa, deseja jantares com todos reunidos e troca de presentes no natal porque sempre acreditou no retrato da família perfeita. Mas, como diz o ditado: o pior cego é aquele que não quer ver.
Em nossa casa não é apenas o teto que é de vidro. Meu pai é um filho da puta completo. Eu o odeio e acredito que esse seja o sentimento mais digno e verdadeiro que já senti. Minha mãe, a mulher mais elegante que já conheci, fora uma pessoa feliz até conhecer o meu progenitor - de acordo com os contos de minha vó abandonada no asilo, eu sou idêntico à minha mãe em sua juventude, um espírito livre e uma alma rebelde - mas agora ela se satisfaz com o luxo e a porra da heroína. Júlia e eu fingimos não saber. Desde crianças fingimos que tudo está bem quando na verdade absolutamente tudo desaba há anos.
Sempre fomos apenas Júlia e eu, mas tudo muda com o tempo, é inquestionável, e nos afastamos de forma natural. As coisas estão onde deviam estar, além de que não dá para voltar a fazer bolo com a lama do jardim. É nisso que penso todas as manhãs, pois assumir que a abandonei me destruiria. E espero que ela faça o mesmo, que pense qualquer merda para ficar bem. No fim, ficar bem sempre quer dizer estar longe do fodido Isak Mendes. Fato.
Acordo com lágrimas molhando meu rosto, meu corpo suado e o coração batendo desesperado, em alerta como um drogado. A casa está sombria e silenciosa enquanto saio do quarto e desço pelas escadas. Vejo através da grande parede de vidro da sala que o sol está há algumas horas de surgir. É madrugada e os demônios saíram para brincar e esta noite minha mente foi o parque de diversões. Não acontece sempre, pois eu evito ao máximo. Sempre estou exausto ou chapado antes de adormecer, sempre dormindo tarde e acordando cedo. Tentando não relaxar, controlando até mesmo o sono. Um fodido lunático.
Meu coração ainda bate acelerado no peito; pela minha nuca, costas e peitoral estou coberto de suor frio e, em meio a tanto silêncio, minha respiração se sobressai, ainda falha. Pesadelos costumavam ser um filme de terror na infância, mas agora são como uma sequência realista da vida real, um terror que você não pode fugir.
Vou até a cozinha e tiro uma garrafa de água da geladeira, coloco meu rosto debaixo da pia e fecho os olhos quando viro a garrafa sobre mim. Minha pele dói, meus dentes se esmagam e meu cabelo fica enchardo, mas é anestesiante. Sinto enquanto as batidas do coração vão ficando sem som, a respiração se controla e a mente troca o terror pelo choque.
Não é real, agora não.
Apoiando os cotovelos no azulejo da pia, encaro o corredor no fundo da sala. Eu sei onde ele acaba, eu já estive lá mil vezes, dormindo e acordado. Quando dou por mim, já estou girando a maçaneta e entrando no escritório do demônio de gravata, do meu pai.
Sempre me sinto sufocado com as paredes escuras e poucas janelas. Tenho a impressão de que quantas mais janelas sejam acrescentadas, mais seria preciso para eu suportar sem me recordar de todos os malditos acontecimentos que ainda me assombram.
Fecho a porta, mesmo sabendo que não tem ninguém em casa. Júlia foi dormi na casa de Emily e levou tudo que precisava para ir ao colégio na segunda-feira, e meus pais estão em mais uma de suas viagens. Talvez eu devesse me ressentir por não tê-los por perto, mas quando estão são o meu inferno particular. Minha mãe me tortura com seu sofrimento em silêncio e o meu pai sendo o monstro que é. Como poderia deseja-los comigo quando só consigo respirar quando não estão aqui?
Me sento na poltrona marrom atrás da mesa principal e olho em volta, a madeira negra sempre envernizada, os livros organizados por alguém que definitivamente tinha toque, mas que nunca foram abertos. A pequena mesa com conhaque e copos ao lado do sofá de couro no canto e, à minha frente, uma pilha de papéis e pastas. E então eu começo a procurar por coisas que definitivamente encontraria, mais coisas para guardar e me sufocar. E não a nada para culpar, não a como entender.
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As mil melodias que cantei por você [Em Atualização]
RomanceAyla Souza finalmente chegou ao seu último ano no colegial. Será a última "nova escola" e ela sabe que não está pronta. O futuro a deixa assustada e o passado a rodeou de barreiras até então indestrutíveis, no entanto, o guitarrista, compositor e vo...