Tratado de paz

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Pidge convidou Keith para passar o resto do intervalo conosco, e ele aceitou depois de alguns segundos de hesitação.

Eu mal consegui engolir meu sanduíche de patê de atum de ansiedade. Revisava minha fala mentalmente várias e várias vezes. Ficava num conflito mental até para decidir se o chamava por "Mullet", pelo nome ou sobrenome.

Respirando fundo, me armei de valor e:

Keith. — chamei.

O mencionado virou-se para mim na hora, surpreso. Eu até faria uma brincadeira com isso, mas até que o alarde foi merecido: eu nunca chamei-o pelo nome antes. Pelo menos, não na frente dele.

Ãhn ... que foi?

— Fica na sala depois da aula? Precisamos ver os detalhes do trabalho do Adam.

Ah ... certo. Combinado!

Foi impressão minha ou ele pareceu ansioso?

     O resto das aulas seguiu-se com todos comentando sobre nossa briga com Lotor aos cochichos. Eu tentava prestar atenção na aula, falhando miseravelmente. Então, optei por organizar o que eu falaria com o Kogane depois da aula.

     Com o fim do dia letivo, todos os alunos correram para fora como uma boiada desgovernada.

     ... Menos o Keith.

     Ele guardava o material com calma e muita organização.

Como ele conseguia ir do "seximente irresistível" para o "fofo como um filhotinho de gatinho" com tanta facilidade?

Desferi um tapa mental em mim mesmo antes de caminhar até a mesa dele. A confiança que eu transmitia era diretamente proporcional ao meu medo de sair do armário. Sentei-me sobre a mesa á frente da dele.

— Eu tava pensando em fazermos na minha casa. Sexta ' bom p'ra você?

Fitou-me com uma sobrancelha erguida por alguns segundos, intrigado. Fingi não ter tido um baita bi panic naquele momento.

— Achei que quisesse fazer na minha casa. Sabe, eu sou filho do professor de física e coisa e tal.

— A ideia soa bastante tentadora, mas não. — recusei, sério — Não quero passar desse jeito. Quero me destacar por mérito próprio.

As cicatrizes que o bullying me deu me fizeram acreditar que ele olharia com ironia e diria algo como "ah, 'tá bom" ou "claro que sim", o tom carregado de ainda mais ironia e um toque de desprezo ácido.

Contudo, quebrando toda as minhas expectativas, ele sorriu sem mostrar os dentes e me lançou um olhar transbordando ... orgulho?

— É assim que se fala! — "parabenizou-me", mais animado — Respondendo a sua pergunta: sim, na sexta ' ótimo.

Acho que encarei-o com uma faceta incrédula por tempo demais, porquê ele suspirou com pesar. Parecia já ter enfrentado situações parecidas milhares de vezes.

— Como tu já ' careca de saber, eu não tenho a melhor das reputações. E ser filho adotivo de não um, mas dois professores de matérias que são um pé no saco não ajuda. Daí, quando o trabalho é em dupla, geralmente insistem em fazer na minha casa enquanto meus pais estão, achando que eles dariam uma mãozinha. E ... sei lá, é muito legal tu querer fazer por merecer e não me usar p'ra tentar ganhar nota extra.

Eu nunca parei para pensar naquilo. Devia ser chato mesmo. E eu tentei empurrar a parte do meu cérebro que comemorava ele parecer como que orgulhoso de mim e de minha escolha.

— Bom ... tem mais uma coisinha que eu preciso falar.

Eu soquei a mim mesmo pelo jeito que falei e as palavras que escolhi falar. Parecia que eu ia me declarar!

(Não que eu não quisesse me declarar. Eu só morria de medo e vergonha naquele momento.)

— E o que seria?

— Sabe ... a minha família é meio ... incomum. — comecei, escolhendo bem as palavras e rezando para não ferrar com tudo — E grande. E amorosa.

— ... Certo? — levantou uma sobrancelha, confuso — O que que tem isso?

— Tem que eles não sabem quando calar a boca.

— Tu também não cala e ninguém reclama.

— Vou fingir que não ouvi nada. — declarei — O negócio é o seguinte: eles provavelmente vão falar e fazer coisas que eu prefiro que não sejam descobertas por todos os alunos da escola.

— Tu quer basicamente que eu não bote a boca no trombone?

— Exatamente! — concordei, fazendo arminhas de dedo inconscientemente.

— ... Eu não quero ser babaca, mas por quê eu "salvaria a reputação" de alguém que sente prazer em encher o meu saco.

— A pergunta é válida. — admiti com um sorrisinho ladino — E eu tenho uma resposta válida: eu vou parar de te encher o saco.

— ... Eu não acho que esse trato seja mesmo justo.

"Tinha ficado melhor na minha cabeça", defendi-me mentalmente com irritação.

— Bom ... tem outra coisa em mente?

— ... Mais ou menos. — admitiu, cruzando os braços e se recusando a me encarar, como se estivesse com medo de algo — Vamos fazer assim ... eu não explano nada e você fica me devendo um favor. Combinado?

— Não é nenhum tipo de favor vergonhoso ou estranhamente íntimo, né? — questionei, apavorado — Tipo, nada de favores sexuais! Eu prometi p'ra minha mãe que ia casar virgem!

Claro que não! — falou, uma indignação incrédula na voz, rindo logo em seguida com as bochechas coradas — Eu pareço um tarado p'ra você!?

— Não, mas vai saber! — defendi-me enquanto jogava os braços para o ar.

Ele gargalhou e eu só consegui pensar em como a sensação de fazê-lo rir era gostosa.

— Então ... tratado de paz? — estendeu-me a mão com suas famigeradas luvas sem dedos.

— Tratado de paz, Mullet. — confirmei, apertando sua mão.

      Forcei a ideia utópica de não largar sua mão e de sair com ele assim e levá-lo até a casa dele e deixar um beijo de despedida em seu dorso para o fundo do meu cérebro.

— Eu não tenho um mullet. O meu cabelo é só comprido! — reclamou, impaciente.

Oye, eu ainda tenho que ter meu apelido exclusivo p'ra você!

     Revirou os olhos e consegui captar um esboço de sorriso que ele não conseguiu conter.

     Fazê-lo rir e sorrir é infinitamente mais gostoso do que importuna-lo — apesar de ele ficar simplesmente gatíssimo irritado ou emburrado. Eu desejei deixar de ser covarde e poder me declarar.

     Mas, por enquanto, eu já achava o suficiente não mais importuna-lo infantilmente e mandar cantadas anônimas e ficar todo boiola falando dele para o Sakura — que devia estar se corroendo de ansiedade para saber como tudo transcorreu.

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