parte um.

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Assim que o relógio despertador soou pelo, até então, silencioso espaço, já Maria Miguel se encontrava, totalmente, desperta. Um sentimento de ansiedade e, concomitante, animação haviam aniquilado qualquer réstia da sonolência que a abraçara e, de modo a atenuar o fervor daquelas atípicas emoções, depositava a integralidade do seu foco nas páginas de "Amor de Perdição", de Camilo Castelo Branco, naquela que era a sua segunda vez a devorar a obra do autor português, face à enorme satisfação que descobria na leitura, a maior e melhor fonte de entretenimento, segundo a sua opinião pessoal.
Silenciou o incomodativo som e, após assinalar o trecho a cuja leitura procedia, com o marcador alusivo à sua série predileta, "Lúcifer", adquirido num website dirigido por um indivíduo detentor de uma insigne capacidade para a arte do desenho e gráfica, desocupou a comodidade propiciada pelo seu contemporâneo colchão e conjunto de lençóis e adentrou a divisão da casa de banho, encerrada no seu espaço pessoal, onde iniciou a sua preparação para a rotina. A primordial justificação para a sua atípica agitação residia no estágio que iniciaria no hospital, inserido no seu quarto ano da licenciatura de enfermagem que integrava.
Após desfrutar das aprazíveis temperaturas da água expulsa pelo chuveiro, a segunda herdeira do casal Miguel envergou o conjunto de vestes, selecionado na anterior noite, desconsiderou a aplicação dos produtos cosméticos destinados ao embelezamento do rosto, bem como a utilização do secador, para o processo de enxugo dos seus lisos e loiros fios e, assim que escondeu os seus pés nos seus inseparáveis ténis brancos do modelo All-Star, da marca internacional de vestuário e calçado, Converse, e assegurou-se que nada se encontrava ausente no interior da bolsa recôndito dos seus essenciais pertences, encaminhou-se para o andar inferior, onde descobriu os seus progenitores e o irmão mais velho, Francisco, na divisão idónea ao consumo das refeições, expectando a sua chegada, a fim de iniciar o mais importante repasto das vinte e quatro horas que compunham o dia.

       — Bom dia. — Verbalizou o seu respeitoso, e usual, cumprimento, consecutivo da distribuição de um beijo na bochecha de cada ente querido, antes de ocupar o lugar onde, habitualmente, se sentava, à ilharga do universitário de vinte e duas primaveras. — Como estás? — Dirigiu-se, especificamente, a Chico — como era, commumente conhecido e, carinhosamente, evocado pelas mais próximas amizades e família —, conquistando como reação da parte do, igualmente, loiro, um profundo revirar de olhos, apesar do pitoresco sorriso que lhe adornava os atraentes traços faciais.

       — Estou bem, sua chata. — O aspirante a advogado especializado no direito desportivo replicou, conectando os seus lábios à bochecha da futura profissional na área da saúde. — Já decorreram dois anos desde que lutámos e doze meses desde que ganhámos. Eu nunca estive, e me senti, melhor. — Com a veracidade , o único sentimento possível, inserida no seu discurso, ele acrescentou, voltando a conduzir a sua boca, daquela vez, à testa de de brilhantes íris de um verde-água.

       — Mas a vigilância apertada de cinco anos que é, não só recomendada, como até exigida, justifica-se pela possibilidade, infelizmente, plausível de ocorrer um retrocesso na condição de saúde, e eu não sou capaz de conservar-me, completamente, tranquila. — A informação transmitida, aquando do início do processo de recuperação do irmão, bem como a aquisição e aprofundamento de conhecimentos teóricos acerca do tema em questão, e viabilizados pelo curso que frequentava, possibilitaram-lhe interceder pela apreensão que, diariamente, a envolvia. — E tu também és inábil a não preocupar-te, apesar de empregares os teus esforços para mascarar! — Maria acusou, apontando-lhe o indicador. O modo como o portuense havia rompido o contacto visual, entretanto, consumado com a irmã, e transladado as suas órbitas de um tom semelhante ao dela, para o chão, conduziram-na à conclusão que, era à própria, que pertencia a razão.

Maria | Diogo Leite Onde histórias criam vida. Descubra agora