14: Godofredo e os Fatais Bastões Verdes

316 64 85
                                    

Assim que a humana o arremessou e, depois, foi puxada para longe por um garoto dos cabelos de caracol, Godofredo disparou ao som dos risos ensandecidos que ecoaram, tão assustado que só conseguia pensar em se esconder numa toca qualquer

Ops! Esta imagem não segue nossas diretrizes de conteúdo. Para continuar a publicação, tente removê-la ou carregar outra.

Assim que a humana o arremessou e, depois, foi puxada para longe por um garoto dos cabelos de caracol, Godofredo disparou ao som dos risos ensandecidos que ecoaram, tão assustado que só conseguia pensar em se esconder numa toca qualquer.

Se lhe perguntassem, ele não saberia dizer com exatidão quando aquele jardim virou uma zona de guerra entre humanos e roedores, porque pareceu ser em menos de dois segundos. Em um momento, ele corria rumo ao buraco da parede e, no instante seguinte, gritos e estalos o fizeram estacionar e olhar para trás. Foi aí que viu o caos que se instalara no local.

Os ratos tinham se revoltado. Estavam por toda parte, tentando subir mas barras das calças, infiltrando-se por dentro de roupas, escalando as mesas e fazendo marmanjos que mais se pareciam com armários emitirem berros finíssimos de machucar os ouvidos, enquanto se sacudiam em uma dança completamente maluca.

- Susana, tem um rato querendo entrar na minha bunda! - a voz grave ecoou num grito, sendo sobreposta por outros.

Comidas foram arremessadas ao chão quando uma senhora escorregou sobre os saltos e foi arremessada contra a mesa do bolo, empapando todo o tecido preto do vestido com o glacê.

No meio de tudo, uma mulher de meia idade que se parecia muito com a humana que caíra em cima carregava um olhar quase louco. Passava as mãos freneticamente no coque já bagunçado, encarando o estardalhaço que se formara ao seu redor com um horror quase palpável. Parecia tão apavorada quanto ele, não pôde deixar de notar, por um motivo que o rato julgara ser muito parecido com o seu: Ser pisoteado. A diferença é que ele poderia ser esmagado de verdade, enquanto o estrago na mulher era uma coisa que vinha de dentro.

Godofredo só lembrou de se esconder quando quase foi pisoteado, pela segunda vez naquela noite. Então, embrenhou-se na treta da parede e encolheu-se em meio a escuridão, vendo apenas resquícios do que acontecia lá fora pela fenda.

Ali, ele se sentiu triste como nunca antes ficara. Seu coração parecia ter virado um papel amassado, sofrido, solitário. Tinha perdido para sempre a chance de degustar as bolotas amarelas!

Seu pequeno corpo converteu-se em um poço de melancolia que só aumentou com a chegada da noite. Ele rodava sozinho pelas paredes e sobre o encanamento, já que, aparentemente, todos haviam fugido para outros lugares, até que sentiu um cheiro diferente, quase transcendental.

Afoito, disparou com as quatro patas rumo à origem do cheiro suculento, que, em pouco tempo, descobriu vim de dois bastões verdes jogados despreocupadamente no canto da parede, perto da cozinha. Godofredo sabia das consequências de provar aquilo, mas, ainda assim, era a única coisa que conseguia pensar.

E ele o fez.

O roedor teve a sensação de visitar o paraíso logo depois da primeira mordida. Então, vieram outras e mais outras, até que seu pequeno corpo começou a pesar, na proporção que uma bruta sonolência deturpava seus sentidos, forçando-o a se deitar no chão.

Pela manhã, dona Judite o encontrou, caído com as patinhas esticadas para cima, perto dos causadores coloridos da morte. Negando com a cabeça, a senhora pegou pá, vassoura e apanhou o roedor, jogando-o no saco de lixo que colocaria para fora dali a poucos minutos e, em horas, Godofredo estaria no aterro da cidade para transformar-se em nada, dia após dia. Ninguém nunca saberia sobre ele ou tudo o que vivera nos seus poucos meses de vida. Ali, era apenas mais um animal vítima daquilo que é inerente à vida e arrebata a todos um dia.

Não ficou o suficiente para ver o quanto aquela mulher da festa, tão assustada com a tragédia que se instalara por ter perdido o controle da situação de forma irreversível, melhorou depois de alguns anos de consultas com homens sábios. Substituíra as taças de vinho em prol da arte, do devaneio de se mergulhar e se permitir flutuar entre as palavras que se escondem em cada linha após, depois de muita luta, realizar o sonho de adolescência de se tornar escritora.

Não ficou o suficiente para que pudesse assistir seu casamento com um homem gentil, que a observava de forma que nenhum que já passara pela sua vida a olhou.

Não ficou o suficiente para ver a filha dela, a quem caíra em cima por puro desastre, subir no palco da cerimônia da mãe depois de tantos anos e, na presença de centenas de pares de olhos que a encaravam, erguer a cabeça e se permitir falar sem muito tremer e temer.

Não ficou o suficiente, tampouco, para observar o casamento dela própria com o homem dos cabelos de caracol que a ajudara. Mas, também, era provável que não conseguisse assistir, já que foi por entre as areias de uma praia distante e o rato, particularmente, nunca gostou muito de areia. Incomodava suas patinhas.

Também não ficou para que pudesse, em uma das suas andanças pelas estradas da vida, acompanhar o irmão do moço dos cachos que quase o pegou com a rata na festa, ao lado da mesa, subir a um palco e vazar toda a arte que tinha dentro de si por cada um dos poros, para uma multidão enlouquecida que resolvera se despir de preconceitos rasos feito poça de água que a chuva forma no asfalto. Ele, com certeza, teria achado interessante acompanhar a sua carreira de sucesso dentro de todos os ônibus gigantes, desde que fosse muito bem servido com todo o queijo que pudessem oferecê-lo, é claro.

Evidentemente, não pôde fazer nada disso.

Mas, apesar dele, a vida continuou.

Ismália, Afonso e o Rato Devorador de CoxinhasOnde histórias criam vida. Descubra agora