13: Ismália e o Vinho de Sentimentos

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O sol já tinha partido para o ocaso há muito tempo quando eu e Afonso abandonamos o refúgio da praia para irmos para casa

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O sol já tinha partido para o ocaso há muito tempo quando eu e Afonso abandonamos o refúgio da praia para irmos para casa. As horas tinham passado sem que sequer nos déssemos conta, entre risos ao vento, beijos com gosto de sol e conversas que carregavam o infinito.

Eu me perguntei como pude passar tantos anos sem beijá-lo. Descobri, no momento em que nossos lábios se tocaram, que para ver estrelas você não precisa olhar para o céu à noite. Percebi, enquanto as ondas do seu cabelo deslizavam por entre os meus dedos, um caleidoscópio de sentimentos que se desmanchavam em meus poros, escorriam até as minhas veias e, gradativamente, eram bombeados pelo meu coração por todos os cantos do meu jardim interno.

Mesmo depois que ele foi embora, com um abraço meio frouxo e um sorriso tímido, a sensação não me abandonou. Eu sabia que estava ferrada, mas não conseguia parar de rir para o vento como se estivesse com alguma patogenia.

Entretanto, quando parei no portão, a tensão me atingiu em cheio. Toquei a campainha e esperei cinco longos segundos, até que a superfície metálica fosse substituída pelas feições cansadas da minha mãe. Ela não falou nada, apenas me deu as costas e eu senti o soco no estômago. As luzes do jardim estavam acesas, evidenciando a bagunça em que estava mergulhado.

Entrei, fechei a casa atrás de mim e, depois, acompanhei-a até a cozinha, vendo-a fisgar uma taça de vinho cheia até a borda e levá-la aos lábios enquanto encostava o quadril no balcão e suas orbes caíam sobre mim. O coque arrumado de horas atrás tinha vários fios fora do lugar e o batom já era inexistente. Eu nunca a tinha visto desde jeito, nem mesmo nos primeiros dias que sucederam ao divórcio.

– Por que saiu daquele jeito? – seu tom, ao contrário do que previra inicialmente, não era agressivo, apenas atento. Quase macio.

Eu nunca tinha contado a ela como coisas daquele tipo me faziam sentir. Na verdade, desde que o papai fora embora e minha mãe se trancou para o mundo, quase não conversávamos, e eu tampouco me sentia confortável com a ideia de fazê-lo, especialmente sobre algo tão... Íntimo. Mas ela tinha que saber. Não tinha como falar dos motivos de eu ter fugido sem incluir esse detalhe não tão pequeno sobre mim. Então, simplesmente deixei as palavras jorrarem.

– Eu não quis essa festa desde o início porque eu... Eu tenho pavor de gente. Estar no meio de uma multidão me faz sentir horrível. Desconfortável. Corrói meu estômago como se tivesse um monte de minhocas me devorando por dentro. Me deixa com vontade de vomitar, de sair correndo. Eu detesto os olhares... Sempre parecem tão acusadores, como se estivessem vendo alguma coisa tão horrível em mim que eu ainda não percebi e me julgando por isso! É como sentir um peso horrível nas costas, é sufocante, é...

O soluço que irrompeu da minha garganta precedeu o fluxo de lágrimas que jorrou pelas minhas bochechas, espalhando um tremor singelo pelos meus membros. Eu me sentia fraca falando sobre aquilo, por colocar um canto tão quebrado de mim para fora. Era como se eu fosse papel em meio ao aperto de uma mão que me amassava cada vez mais, comprimindo meus órgãos internos e, gradativamente, tirando meu ar.

Mamãe ficou estática por alguns segundos, encarando-me com os lábios semiabertos e as palmas firmes ao redor da taça embebida de rubro, até que, de súbito, deixou que o vidro escorregasse da sua mão, atingindo a cerâmica com um estalo seco que machucou meus tímpanos. O líquido com o cheiro característico de uva fermentada manchou o branco com seu vermelho e, ali, depois do sereno ser convertido em espanto, pareceu simbolizar o caos mudo que se despargia dentro de nós duas, escapando por cada poro e polvilhando o ar com partículas de tensão. Segundos demais se passaram, até que Letícia venceu a distância que separava nossos corpos e, pela primeira vez em dois anos, tomou-me para si num aperto tão firme que me vi sem ar por alguns instantes.

Envolvi sua cintura e deixei que meu queixo pendesse em seu ombro, o cheiro de mãe inundando minhas narinas com seus tons de agridoce. E permanecemos ali, estacionadas, com o vinho ainda se dissipando próximo aos nosso pés e os cacos de vidro por limpar na nossa bagunça interna e no chão.

Eu sabia que era o seu pedido de desculpas silencioso. Então, apenas tentei sorver cada parte dele, em cada cheiro, cada textura e cada sensação com leveza de nuvem.

– Eu... Peguei o número de uma psicóloga há algum tempo. –  murmurou, o tom trêmulo em seus lábios. – Vou marcar uma consulta para você. Aliás, para nós duas. – suspirou. – Preciso consertar a minha vida e seguir em frente. Já passou da hora...

– Não passou, não. – afirmei. – Cada um tem seu tempo, mãe. Não existe momento certo pra mudar. Eu... Tô muito feliz em ouvir que está disposta a tentar ficar melhor. Eu também estou. Vamos... Fazer isso juntas.

Um longo instante de silêncio se seguiu, com apenas nossas respirações intercaladas se fazendo audíveis, até que ela soprou, com um calor que envolveu meu peito:

– Tenho orgulho de você.

Abri um sorriso involuntário e a apertei com mais força, sentindo uma euforia fumegante desenrolar seus ramos por cada parte de mim.

Então, uma pergunta estalou na minha cabeça.

– O que aconteceu depois que eu saí?

Seu suspiro preencheu o ar, enquanto deslizava os dedos pelo meu cabelo.

– Um desastre total. Ratos que eu não faço ideia de onde vieram, por toda parte, subindo nas pessoas, na mesa... – seu nariz se torceu em uma careta. – Acho que passei a maior vergonha da minha vida. – seu riso foi fraco, seco e sem emoção. – Mas não importa. O principal é que você tá aqui, de novo. Eu... Não sei o que faria se alguma coisa tivesse te acontecido.

Assenti, com uma pontada de culpa me apertando o peito por tê-la deixado tão preocupada. Entretanto, não tive muito tempo para pensar sobre o quão inconsequente tinha sido, porque sua voz voltou a ecoar.

– Você quer... Não sei, assistir um filme, depois de me ajudar a limpar a bagunça daquele jardim? A Judite arrumou uma parte, mas teve que ir para casa por causa do filho...

Então, eu sorri. Possivelmente, um dos maiores e mais verdadeiros sorrisos da minha vida.

Passamos mais de uma hora para deixar aquele lugar minimamente organizado, entre risos e conversas triviais de refrescar a alma que me fizeram perceber o quanto tinha sentido falta da minha mãe. Depois, tentamos fazer pipoca caramelizada e, após quase tocar fogo em tudo graças a um bendito pano de prato incendiário, conseguimos concluir a receita e nos encolhemos no sofá para assistir um clássico da comédia que ambas amávamos.

E, ali, enquanto nossas risadas ocasionais se faziam presentes e o manto quente de conforto circundava meu coração, eu desejei, por um instante, fazer dezoito anos mais vezes, só para o dia terminar com mais momentos como aquele.

Ismália, Afonso e o Rato Devorador de CoxinhasOnde histórias criam vida. Descubra agora