Nota: Esse capítulo aborda intensos pensamentos relacionados à ansiedade e fobia social.
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Eu estava sentindo de novo.
A pressão no peito era quase palpável, como se ramos de hera estivessem comprimindo o órgão pulsante abrigado no meio da minha caixa torácica e se expandindo como uma supernova em todas as direções, suas folhas cortantes me arranhando por dentro.
Tinha piorado depois que vi o Afonso parado perto das roseiras, com o castanho das orbes se desmanchando no caracol que deslizava sobre a parede. Ele parecia um poeta perdido, enquanto a brisa macia sacudia seus cachos em todas as direções e os dedos da palma direita roçavam pela extensão do maxilar que tinha assumido um contorno mais firme desde que entrara na puberdade. Era um gesto que sempre fazia quando redemoinhos de inquietude tempestuosa pairavam sobre sua cabeça.
O problema é que o idiota estava lindo dentro daquela maldita calça jeans e camisa xadrez azul e branca arregaçada até os cotovelos, deixando à mostra a pele cor de oliva dos antebraços que, hora ou outra, reluziam sob a luz alaranjada do sol.
Afonso nunca acreditava quando eu dizia que ele era bonito, mas existiam poucas coisas na minha vida que eu falava com tanta certeza quanto isso.
Mas ele, também, estava estranho para cacete. Não tinha me dado nenhum sinal de vida desde que fora embora ontem à tarde e, quando me aproximei e falei com ele, parecia estar em outra dimensão. Achei que um abraço poderia trazê-lo de volta, mas só serviu para confirmar o quão esquisito estava. Seu corpo ficou rígido contra o meu, como se a única coisa que eu lhe transmitisse fosse desconforto, o que piorou quando eu me afastei e percebi que, ao invés de fixar as orbes nas minhas da forma que sempre fazia, sequer olhava para o meu nariz.
Senti-me mal, num misto de rejeição e inquietude por não saber o que estava acontecendo. Minha cabeça começou a viajar por todas as possibilidades existentes no universo como um planeta que se perdeu da sua órbita e agora vagava, sem rumo, pelo espaço salpicado de milhões de estrelas e asteroides que insistiam em se chocar contra a minha atmosfera.
Passei por mais alguns amigos malucos por fotos e, infelizmente, não consegui me livrar deles até posar em frente das câmeras e celulares. Rodopiei como um pião maluco pelos quatro cantos do jardim, indo de câmera em câmera e abrindo sorrisos de vento, enquanto tentava não me aproximar demais do buraco negro. A gravidade era forte demais nas suas bordas e, se me permitisse chegar um pouco mais perto, minha espaguetificação seria inevitável.
Eu só queria ir para o meu quarto e me afundar nos lençóis até que a textura macia da cama me engolisse e fizesse a sensação ruim sumir, como todas as outras vezes.
Era gente demais. O burburinho se mesclava às risadas histéricas das pessoas e eu, sempre que passava, encolhida como um animal acuado, aqueles pares de olhos me acompanhavam como se eu fosse o maldito sol que tivesse caído na terra. Quer dizer, estava mais para um maldito meteoro, do mesmo tipo que dizimou os dinossauros.
Aquele vestido deveria estar me deixando ridícula. Meu cabelo certamente estava com vários fios fora do lugar. Talvez estivessem falando do tênis que saía do vestido sempre que eu andava e, sem conseguirem se conter diante daquele assassinato à moda, mas com medo de me magoar se falassem em voz alta, apenas enunciavam baixinho nos ouvidos uns dos outros, enquanto se serviam de refrigerante em seus copos de plástico com as bordas, às vezes, manchadas de batom.
Era por isso que não gostava de aniversários, pelas multidões e todos os malditos olhares. Mas, no fundo, sabia que tudo isso era eu.
Eu não imaginava que as coisas poderiam piorar, mas aconteceu. No momento em que eu me apoiei na mesa do bolo, numa tentativa de me camuflar ao lado dos seus cinco andares cobertos de glacê, e alguém gritou:
- Um rato!
Minhas orbes vagaram por todos os cantos da madeira que cobria o chão e, depois, subiram para a mesa, numa tentativa de achar o tal roedor. Mas quando a bola de pelos acinzentada entrou no meu campo de visão, já era tarde demais, porque ele já estava em cima de mim, tentando escalar meu vestido com as minúsculas garrinhas e o olhar psicopata demais para uma criatura daquele tamanho.
Eu gritei tão alto que minhas cordas vocais arderam e, se perceber, entrei num combate quase épico com o maldito rato, praticamente sambando para arremessá-lo longe, e quando finalmente caiu e disparou pelo chão, pude ouvir o coro de risadas explodir de todas as direções.
Meus olhos vagaram por cada uma das pessoas que enfeitavam o jardim, o eco daqueles risos soando como bombas arremessadas em meus ouvidos. Todos estavam me encarando, enquanto riam, riam e riam, sem parar, até suas bochechas ficarem vermelhas e os corpos se inclinarem para frente.
A ardência violenta nas minhas bochechas subiu para os olhos, conforme a água salgada do mar revolto que compunha cada pedacinho de mim ameaçava vazar por eles.
Não, não, não. Eu estava sendo tão ridícula, tão estranha, tão esquisita, tão horrível, tão criança, tão...
Senti o toque de uma mão queimar contra a minha e, assim que mirei aquele par de olhos castanhos esquadrinhando cada traço do meu rosto com uma angústia quase palpável, relaxei os músculos e deixei que me puxasse para longe dali, rumo a qualquer lugar que quisesse.
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Ismália, Afonso e o Rato Devorador de Coxinhas
Novela JuvenilIsmália e Afonso são amigos desde a época que a terra parecia ser uma refeição em potencial nas suas cabecinhas de criança. Os anos selados pela promessa de uma amizade eterna se encarregaram de convencê-los que não tinha a menor chance das coisas...