Perdido em mim

78 15 5
                                    

Faz alguns anos desde que o surto começou. Eu já não escuto a vizinha do quarto 614, talvez ela tenha se mudado ou apenas... morrido de fome. Uma senhora de 54 anos viciada em gatos e sitcoms de tv antigas: Um maluco no pedaço, I Love Lucy, Alf o ETeimoso... por aí vai. Minha janela ficava bem próxima da dela, ela era feita de um material pouco resistente de madeira, era quadrada e com um pequeno divisor para a entrada de ar. Quando o seriado começava, eu deitava minha cabeça na janela, assim, dava para ouvir um "Eae tio Phill" enquanto apreciava o sol pairar sobre os telhados dos prédios da frente. Prédios enormes com 180 andares cada, o meu é um pouco menor com apenas 120. Embora a quantidade de andares, haviam poucas pessoas morando, o síndico vivia fora e sempre fica uma bagunça...
Bem, eu andei escrevendo bastante, para nenhum parente em específico, uma namorada ou um amigo, apenas escrevo na esperança de algum dia, alguém vasculhe meu quarto e encontre quem um dia fui, e que esse legado siga adiante.
Não me culpo por não poder ajudar as pessoas lá fora, perdi várias pessoas anos atrás e minha cota de culpa está esgotada desde então, eu apenas estou aqui sentado e escrevendo acompanhado de uma boa xícara de café.
Eu acordo cedo todos os dias pra ver o sol nascer. Ele fica diferente a cada dia que passa. Semana passada era laranja, e bem... hoje ele está vermelho igual ao meu suéter.
Já existiram outros super como eu: o cara da água, o cara do fogo, o cara que voa... enfim, eu não sei bem o que aconteceu com eles, talvez O Tocha tenha ido dar um passeio no sol, deve ter uma boa vista lá, bem distante dos problemas... que cara babaca! Ele tinha um topete típico de filme adolescente dos anos 90, as mulheres adoravam ele por "ter um coração quente" por favor, né? Ele nem falava comigo e ele era meu vizinho.
Bem, me recompondo da raiva... o projeto de John Travolta de Embalos de Sábado a noite até que era um cara legal, tinha boa pinta pra herói, o cara salvou 98 pessoas de um incêndio numa boate gay, o cara é foda.
Já eu? Bem... eu costumo cuidar de casos menores: a polícia me adora, sempre ajudo com os casos e tenho uma certa facilidade em encontrar pistas. Ps: eu sou viciado em Sherlock Holmes. Resolvi centenas de casos no distrito da Geórgia.
Mas, com tantas histórias, eu não sei bem o que aconteceu com o grupo ao certo. Todos se dispersaram como uma metralhadora atirando em pássaros, e eu, eu fiquei preso em um apartamento, velho e sem dinheiro. Mas, não penso em voltar. Cada membro do grupo tinha seus podres, eu sabia de todos eles pois a maioria vinha falar comigo para resolver. Tinha o curioso caso do homem de lata que estuprou uma mulher depois de um surto de raiva em um bar, o cara tem uns lapsos de memória quando bebe, começa a lembrar da infância de merda que teve. Bom... o cara é tipo um robocop imortal, ele acabou perdendo a memória depois do ocorrido e aos prantos veio me contatar pelas denúncias contra ele. Eu tentei o acalmar mas o miserável fugiu para a casa da mamãe antes que eu pudesse fazer alguma coisa para ajudar, conheço bons advogados. Nunca mais frequentou nenhum bar desde então. Ele tinha um estilo bem diferente pra falar a verdade, ele usava uma bandana no antebraço com detalhes da bandeira do comunismo, tinha um queixo de lata e cabelos castanho-escuros compridos, com um corte de lâmina fazendo um arco em seu pescoço. Sempre usava um terno branco, uma gravata amarela e a bandana ficava por cima do terno. É extremamente ligado com a política mas tinha opiniões avessas sobre assuntos mais... delicados, eu diria.
Ontem eu terminei de ler "Um oceano em Iowa", um livro de drama na visão de um garotinho que ficou preso nos 7 anos de idade e sua mãe abandonou a família. Me deu uma má nostalgia de quando eu nasci às pressas em 24 de julho de 1968. Foi um parto terrível, minha mãe não resistiu e acabou morrendo ao dar a luz para o pequeno albino de olhos azuis, Oliver Miller. Meu pai dizia que ela era uma mulher linda. Cassie Miller tinha olhos cor de mel, tão brilhantes como o sol, adorava usar vestidos vermelhos, usou até mesmo um em seu casamento, e ela estava linda... ela era fã dos Beatles e adorava Rolling Stones. Eles se conheceram em uma roda gigante 2 anos antes dela dar a luz, ou, no caso, perder a luz. O único problema foi que ela resolveu ter um filho em um mundo onde a taxa de fertilidade é inferior a 12% e todos estavam presos a um fanatismo político dominado por partidos fascistas e corruptos.
Depois do meu nascimento, fiz parte de um experimento que fodeu com toda a minha família e amigos de infância. Passei 10 anos da minha vida morando no frio de um laboratório submerso. Junto com ursos polares que também faziam parte do experimento. Felizmente, nem tudo saiu como planejado. O objetivo era fazer uma transfusão de sangue onde eu viraria o próprio frio do Alaska. Minhas veias nasceram com lascas de gelo que faziam com que eu inspirasse vapor gelado e congelar pequenas coisas com os dedos. Ainda sim, adorava um misto quente no café da manhã. Isso foi aos meus 5 anos de idade, quando os cientistas descobriram meu potencial e me colocaram no projeto.
Com grandes poderes, vem grandes merdas na sua vida.

O Homem De GeloOnde histórias criam vida. Descubra agora