Quando parei de ler aquele jornal, Aurora estava sentada no meio-fio. Com os braços apoiados nas coxas e a cabeça sobre a mão esquerda. Cabisbaixa, pensando no que acabara de ler.
Esquecemos do plano por alguns minutos, a rua está vazia, longe de qualquer perigo. Um silêncio agonizante ecoa pelos becos. Só se ouvira os ventos fazendo sinfonias pelas árvores.
Tem um pequeno bosque no caminho do supermercado. Naquele bosque, há árvores de todos os jeitos e tamanhos. Se fosse contar com o governo, eles derrubariam as árvores em fevereiro de 2030. Mas, naquele mesmo dia, a população se juntou em um enorme protesto com cerca de 1 milhão de pessoas envolvendo outras cidades. Eu estava na casa do Corvo nesse dia, ele me chamou para um churrasco com a sogra, falamos da mulher dele e tudo mais. O protesto aconteceu bem na frente da casa dele, a melhor parte do protesto foi quando o Corvo fez alguns palhaços gigantescos feitos de sombras andando entre as pessoas. Aquela merda assustou o governador, e foi engraçado pra caramba.
Por causa desse dia, as árvores dançam com o vento forte nessa tarde. Fazendo um belo contraste entre o caos nas ruas, e o lindo bosque da cidade de Savannah.
Eu decidi sentar perto da Aurora para fazer companhia, não havia nada a temer agora.
-Sabe, senhor de gelo, as vezes não compreendemos direito o mal do mundo. Deve ser por isso que ele decepciona tanto e é mais fácil amar algo impossível.
-É um mundo de merda, baixinha. Quanto mais depositamos confiança nas pessoas, mais ainda eles te decepcionam. Acho que... colocam os expectativas demais nas coisas. Somos seres ansiosos por natureza. Somos intensos sem querer.
-Sabias palavras, velho.
-Obrigado, companheiro da Branca de neve.
Aurora dá um leve sorrisinho, tira o cabelo do rosto e depois esconde forçadamente o corar das bochechas dando um soco no meu ombro.
-Ai!
-Era pra doer mesmo, Branca de neve.
Aurora levanta primeiro, limpando o resto de terra que ficara nas costas. E questionando sobre o plano. Eu demoro um pouco a levantar, vejo então uma mãozinha negra sendo estendida na frente do meu rosto. Quando eu me estico para pegar, ela recua colocando-no seu bolso.
-Devagar demais, velhote.
Após alguns estalos, eu finalmente consigo me levantar. Voltando ao plano, vamos em direção ao supermercado e passando pelo bosque. Estava vazio, em silêncio como o restante da rua. Alguns papeis velhos e colchões estavam largados pelo chão da entrada, cobertos de mijo e até mesmo sangue. Sujando aqueles discursos de ódio, que tornaram o país uma anarquia.
Talvez tenha sido esse o motivo de toda essa confusão. A anarquia gerou discórdia em dezenas de outros países. O caos foi integrado, por minha culpa. Por culpa do Corvo. Do Capitão... mas, e se o surto foi algo planejado? O governo, em desespero, teve a brilhante ideia de exterminar boa parte dos líderes da revolta. Uma mensagem do próprio governo foi espalhado pelas redes sociais, canais de televisão e jornais: "Pessoas de bem, é com grande visar que venho dizer para com permaneçam em casa. Estamos passando por momentos difíceis ao redor de todo o mundo. Para que mais pessoas não se machuquem, peço que permaneçam em suas residências até que tudo seja normalizando." Tempos depois, a doença. E agora, cá estou eu, invadindo um supermercado com uma baixinha negra para pegar café no meio de uma pandemia. Bem, é só uma teoria, não custa nada pensar um pouco.
O Waymart era bastante frequentado antes do surto começar. Era quase um ponto turístico aqui na Savannah, tanto quanto as arquiteturas de pré-guerra. O meu melhor passatempo era ver os casais apaixonados andando em carruagens de cavalos. Eles andavam com um sorriso sincero no rosto, era bonito de se ver. "Era", pois faz décadas que não vejo nenhum. Principalmente hoje, onde a maioria dos cavalos acabaram sofrendo bastante na mão de seus donos, impossibilitados de comprar alimento e, por isso, a maioria morreu de fome e desidratação em seus campos.
Waymart era quase um castelo com fileiras enormes de produtos. Em cada feriado importante, era decorado de formas diferentes. O natal era o mais bonito. Esse ano, não teve nada disso. Até pensei em ir para lá e decorar com algumas estrelas, mas, desisti da ideia bem facilmente.
Estava tudo tranquilo, pelo menos do lado de fora. A porta de entrada abria e fechava sozinha, o que me deixava estranhamente desconfortável por conta de seus vidros escuros. Eu olhava tudo, e em outro instante, não via mais nada de fora a dentro.
Passando pela porta, a maioria das fileiras estavam vazias e empoeiradas. As luzes do teto não funcionavam mais desde o ano passado, dando ao ambiente, um aspecto sombrio e nada aconchegante. Por hora, não havia mal nenhum, estava calmo e aquilo me deixava desconfortável. Era claustrofóbico e sufocante ficar ali dentro.
Cochichando, Aurora faz alguns gestos com as mãos
-Eu, corredor um dois. Você três e quarto
O silêncio logo é cortado por grunhidos vindos do fundo do supermercado, seguidos por batidas com força nos portões que davam acesso ao armazém. Não parecia ter menos de 15 daqueles capirotinhos juntos.
Já chegando no final do corredor, Aurora se encontra comigo, abrindo bem devagar a bolsa de armas. O ziper velho, somado com a visão reduzida, acaba piorando a abertura do mesmo, mas, logo é seguido de um suspiro ao conseguir abrir.
Aurora tira duas escopetas automáticas de dentro da bolsa. As duas eram pichadas com um vermelho vibrante e tinham algumas carinhas desenhadas. Eram a cara da Aurora, mesmo sendo 2 vezes o tamanho dela.
Eu então materializo, não uma metralhadora, mas uma grande Maça de espinhos para ser usada com duas mãos. Por conta do peso, eu a apoio em minhas costas, e abro um pouco as pernas para regular o peso.
-Ei, gracinhas
Aurora aponta as duas escopetas na direção a pequena horda e diz:
-Digam "olá" pro meu amiguinho
Eu adorei a referência a Scarface, o que me encheu de empolgação.
Após toda a matança, abrimos o portão, na esperança de encontrarmos um grande prêmio que nem nos jogos de videogame ou coisa do tipo, mas, eram apenas um monte de cadáveres apodrecendo. O armazém estava trancado, pelo lado de dentro, alguém estivera vivendo por lá.
Ao investigar o local e vermos que era uma família morando por lá, achamos 6 maravilhosos pacotes de café pelo chão. Esconderam tão bem que nem lembraram onde colocaram. Deve ser uma droga morrer desse jeito.
Ao sair do Waymart, o bolso do meu suéter começa a vibrar. Eu meto a mão dentro do bolso, "número desconhecido" ele diz. Ao atender, com curiosidade pergunto:
-Manda!?
-Oliver Miller?
Eu reconheço aquela voz de algum lugar embora esteja falhando.
-Quem pergunta?-Eu reconheço aquela voz de algum lugar embora esteja falhando.
-Jackson Partman -O cara na linha responde
-Capitão? -Eu digo isso em entusiasmo, dando um pequeno grito de alegria. -Puta que pariu... quem morreu dessa vez?
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O Homem De Gelo
Misteri / ThrillerTrancafiado em seu próprio quarto após um surto viral. Um ex super, acaba se vendo questionando sua existência acompanhado apenas de algumas folhas de papel, uma caneta com pouca tinta e uma vizinha do lado que talvez esteja morta.