capítulo 3

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Com um potente chá sedativo, Villanelle foi mantida desacordada, sendo despertada – não completamente, não se podia dizer que estava consciente em qualquer momento – somente para ser alimentada com sopas e cremes pelas freiras responsáveis pelo cuidado dos nobres doentes na enfermaria do palácio, e, poucos segundos depois de certificarem-se de que tudo havia sido engolido, mais chá era administrado. Era necessário o repouso completo, o médico havia dito. O menor esforço poderia causar o rompimento do tecido que tentava cicatrizar, qualquer gasto de energia desnecessário poderia distrair o corpo do que era mais importante no momento. Recebia leite de papoula para evitar a dor, seria difícil manter alguém dormindo com as dores que sentiria se não houvesse nenhuma analgesia*, e emplastos herbais na ferida para conter a infecção que afastou qualquer possibilidade de sutura.
Sem dúvida, era um privilégio incalculável. A maioria de suas companheiras na primeira linha de ataque ou morreu instantaneamente ou definhou no campo de batalha mesmo, e aquelas sortudas que foram socorridas com vida ao fim do enfrentamento foram tratadas em tendas com recursos infinitamente menores do que aqueles que estavam sendo disponibilizados no castelo. Uma realidade dura demais para que Eve encarasse.
A princesa foi ensinada a visitar e agradecer pelos esforços dos que feriam-se defendendo a coroa, e assim ela o fez, mas para aquela que em particular havia salvado sua vida, com quem sentiu a faísca não experimentada anteriormente com qualquer outra pessoa, quis reservar alguns minutos diários em sua agenda apertada com os deveres de Estado. A cada entardecer parava diante do leito, contemplava sua heroína desacordada e fazia uma cruz em sua testa; mais tarde, na abadia, ajoelhava-se e em suas rezas pelo reino incluía os pedidos para a reabilitação daquela estranha que lhe trazia alguma familiaridade. Nas missas dominicais esse desejo não deixou a sua cabeça. No décimo quarto dia sua graça foi alcançada, o médico avaliou que a cicatrização corria bem, os tecidos mortos haviam desbridados** com sucesso, nenhum indicativo de necrose, não existia mais sinal de pus ou qualquer demonstração de infecção, a pele estava se reconstituindo e a sedação poderia ser descontinuada.
Villanelle foi despertando aos poucos, confusão era uma palavra sútil para o que estava sentindo. Olhando ao redor percebeu-se num comprido e iluminado salão com duas fileiras de camas, não conseguiu contar quantas. A visão estava turva, o corpo fraco e dolorido, a boca tão seca que foi difícil descolar um lábio do outro. Por baixo do lençol de linho e um cobertor de lã vestia somente a chemise, ao levantá-la percebeu que em sua pelve havia panos atados como os que colocavam em bebês. Pensou se quando realmente era uma criança alguém havia tido o cuidado de tê-la colocado em fraldas, pelo menos estava limpa. A autopiedade foi suprimida pela ideia de levantar-se a procura de água e comida, seu estômago roncava audivelmente, desesperado por algo sólido, mas quando se sentou, uma profunda fisgada na coxa direita a obrigou a deitar-se novamente, um turbilhão as memórias vieram para superfície enquanto tentava conter o grito de dor.
Konstantin. Contrato. Navio. Alistamento. Treinamento. Marchar. Eve. Lutar. Eve. Barulho. Eve. Sangue. Eve. Fadiga. Eve. Medo. Eve. Sacrifício. Eve. Dor. O medo no rosto de Eve.
Estava em missão, precisava concentrar-se, foi essa a memória a qual se agarrou.
E sacrificou-se por uma desconhecida, foi o pensamento subsequente. Sendo sincera, não achava que se sacrificaria nem por alguém que realmente conhecesse.
Desenrolou a atadura que segurava o curativo na perna para poder avaliar o dano. Havia uma grande mancha rósea, a pele parecia mais fina e brilhante ali, esticada como se fosse se romper. Olhou para os braços, estavam bastante emagrecidos, como todo o corpo, mas os pequenos cortes que neles sofrera já quase nem se notavam. Passou os dedos no rosto tateando para adivinhar se nenhum pedaço faltava, os ossos estavam mais evidentes e as bochechas diminuíram, mas constatou, aliviada, que todas as partes estavam ali, e deslizou as mãos para trás, tocando os cabelos secos, mas desembaraçados. Alguém estava cuidando muito bem dela.
Estou acabada, e tudo isso por Eve, pensou. Mas no fundo temia que, se necessário fosse, faria novamente, só não sabia o motivo. Aquela atitude veio de uma parte de si completamente irracional, protegê-la foi seu instinto mais primitivo e os seus sempre foram muito diferentes disso.
Respirou fundo, o aroma herbal invadiu suas narinas, e começou mais uma investida para colocar os pés no chão quando uma senhora – provavelmente uma freira, pelas vestes – foi correndo lhe acudir.
- Senhorita Villanelle, por favor, fique deitada.
- Preciso de um copo d’água e qualquer coisa que possa comer. – A voz saiu estranha, como alguém que voltava dos mortos. Não conseguir levantar e pegar o que quisesse não era algo que lhe agradava, mas em seu estado atual achou melhor aceitar a ajuda.
Mais do que depressa a senhora de rosto redondo e enrugado retornou com uma bandeja com pães e um cálice com água.
- Pelo amor de cristo, me traga comida de verdade. – Disse Villanelle assim que a viu cruzando a porta.
- Sinto muito, irei providenciar, mandarei que preparem uma refeição mais digna para a senhorita. Se me permite, irei comunicar à princesa de que acordaste.
- Espere, me traga a água. – Ela bebeu em um grande e apressado gole, como se temesse que tudo evaporasse se não engolisse rápido o suficiente. – Por que irá avisá-la? – Tentava concentrar-se no rosto da freira, mas o salão ainda girava ao seu redor.
- Ela ordenou expressamente que fosse chamada quando a senhorita acordasse. Tens sorte, a princesa parece ter grande estima pela senhorita.
A satisfação era dupla, seu plano desenrolava-se perfeitamente, mas aquele prazer também vinha de um lugar desconhecido para a assassina.
- Pois então a chame. O que está esperando?
Não soube quanto tempo se passou, ainda estava fora da órbita.
Antes de vê-la, escutou passos de duas pessoas, sapatos com pequeno salto e botas pesadas. Eve chegara com um vestido verde profundo que destacava ainda mais em sua pele oliva. A barra de sua saia com detalhes em dourado possuía pelo menos o dobro da circunferência de sua cintura, seus cabelos, que sem dúvida chamaram a atenção de Villanelle assim como no primeiro dia, estavam parcialmente presos em uma rede com minúsculas pérolas, alguns cachos pendiam soltos sobre os ombros, e no topo da cabeça uma tiara de pedrarias indicava sua condição de nobreza. O decote quadrado decorado com pérolas, assim como a rede de cabelo e seu colar, deixava visível o colo sob o fichu de renda fina, algo que a assassina não pode deixar de notar e apreciar.
Estava acompanhada de uma mulher de rosto comprido e pele negra que usava vestes mais sóbrias. A casaca de tecido preto encorpado era justa ao tronco e abria-se em pregas a partir da cintura terminando na altura do joelho, sob ela calças da mesma cor. Mesclava-se com partes de armadura, havia ombreiras de metal sobre uma capa de couro presa por uma corrente prateada, proteção para o pescoço e antebraços também estava presente. Bordado sobre o peito a insígnia de um cisne segurando uma rosa vermelha com o bico.  E é claro, portava uma espada embainhada.
A princesa aproximou-se, começou a falar mesmo antes de estar realmente perto, projetando a voz mais alto do que o seu habitual para ser escutada. A grande alegria era aparente fugindo dos bons modos, não se devia demonstrar fortes emoções, uma dama não alterava a voz.
- Que benção a sua recuperação. Como está sentindo-se?
- Mal. – A resposta sem saudações e floreios causou risos em Eve, não estava acostumada com muita espontaneidade. – Minha princesa.
- Permita-me apresentar Jess, ela é cavaleira da minha guarda real.
- É muito bom ver a sua recuperação. – A cavaleira não demonstrava nenhum sinal de estar realmente contente.
A acamada agradeceu com um sorriso que acreditava ser muito natural e um aceno de cabeça.
- Villanelle, o seu gesto... – Eve inspirou e olhou para cima, seu colar balançou entre os seios, chamando mais a atenção de sua interlocutora do que as palavras. – ... me tocou.
- Só fiz o necessário, o que qualquer um faria, minha princesa.
- Eu gostaria de recompensá-la, acho que a linha de frente no campo de batalha não é o melhor uso para as habilidades que demonstrou. Quero tê-la por perto. – “Pontos para mim”, pensou a assassina. – Eu gostaria que você se juntasse a Jess e integrasse minha guarda real.
- Seria uma honra, mas temo não ser digna. – Fez sua melhor cara de tímida, não sabia muito bem, mas achava que era assim que uma pessoa normal reagiria, e esse era seu ponto forte, imitar e emular sentimentos.
- Você é sim, disso tenho certeza. O que fez por mim... sua destreza...
Eve foi interrompida pela entrada da freira que empurrava um carrinho de apoio para bandejas, trazendo uma refeição completa. Serviria tranquilamente três pessoas, no Castelo Doze, talvez, sete crianças. A senhora fez uma reverência apressada e colocou o pequeno banquete ao alcance da ilustre paciente.
- Por favor, não faça cena, sirva-se. - A princesa falou, mas não é como se fosse necessário, naquela altura a primeira garfada já estava a caminho da boca voraz. Villanelle sabia o que era fome, sabia o que era a dor de um estômago vazio, mas fazia muito tempo que não se sentia assim. Mal mastigou aquele pedaço de frango para logo engolir e saciar-se de uma vez. Nem bem na garganta havia chegado antes de causar-lhe náuseas. Felizmente, ali estava a senhora, segurando um balde ao seu lado, aparentemente isso não era tão raro de acontecer.
- Ah, pobre garota! - Eve disse antes de colocar a mão sob a testa ardente da acamada que instintivamente recuou ao toque. Em qualquer outra situação daria um tapa naquela mão intrometida, mas meio que estava gostando dessa vez. - Está queimando em febre, o médico disse que não é preocupante nesse momento, mas você terá o tempo que precisar para recuperar-se antes de tomar o seu posto, caso aceite, é claro. Precisará morar no castelo, mas ganhará terras para sua família. – O rosto da princesa ficou ruborizado ao lembrar da história que lhe foi contada quando se conheceram, de pais e irmãos mortos, decidiu seguir falando rapidamente esperando que a loira a sua frente nem notasse o que foi dito. – Além das terras receberá um salário que acredito ser bem atraente, a tesoureira real poderá informar-lhe melhor. Revezará em turnos individuais ou duplos com as outras guardas. É um cargo vitalício. Não se sinta pressionada para aceitar, caso isso não seja o que deseja para sua vida, mas acho que há grande potencial em você, sinto que algo te trouxe até aqui porque há uma missão que precisa cumprir.
“Definitivamente eu tenho uma, mas acredito que você não gostaria dela” a assassina pensou, antes de responder mantendo sua personagem de boa moça do interior.
- Se a senhora acredita que serei útil, fico honrada em aceitar. – Villanelle olhou para o carrinho de comidas. – Onde está a minha educação? – Estendeu o braço até a cesta de frutas, escolhendo a maçã mais bonita. – Aceita, minha princesa?
Eve deu uma risada tímida, surpresa pelo que pensava ser a espontaneidade tão rara em seu dia a dia.
- Muito obrigada, mas já estou satisfeita, quem sabe em outra ocasião eu aceite. – Recompôs-se do riso e colocou os cachos para trás da orelha. – Mas por hora gostaria de dizer que muito me alegra a sua decisão. Deixarei você descansar, acredito que precise.
Com um sorriso terno Eve virou-se e caminhou para a porta, acompanhada de Jess, e tudo o que Villanelle conseguiu pensar foi o quanto ficaria arrasadora naquele uniforme preto, especialmente na capa de couro com aplicações de recortes do mesmo material em forma de penas longas sobre os ombros a partir das ombreiras de metal.

Não era a primeira vez que a assassina era ferida gravemente, e sabia que não seria a última, se continuasse na profissão. Era boa no que fazia e já havia aprendido a se defender, não era nada fácil atingi-la, mas nos anos de treinamentos passou algum tempo com curativos e talas. E antes disso, bem, não sabia exatamente como sobreviveu até Konstantin encontrá-la.
Em três dias já dizia estar ótima, pronta para mais uma batalha. Realmente estava bem melhor, mas mentia ao dizer que não sentia dores para caminhar. Mas o que seria dela sem suas pequenas mentiras? Mentia, fingia e simulava há tanto tempo que seu conceito de verdade era completamente abstrato.
O rei agonizante Isaac morrera durante o treinamento que as garotas receberam antes da batalha, e nos dias que se seguiram na enfermaria Villanelle ouvira que a coroação estava próxima. Cada dia que chegava mais perto, mais impaciente pela alta médica estava. No dia anterior ao evento não houve quem a prendesse em sua maca, precisava ver a extravagância e o luxo de perto, merecia.
Diante de tanta insistência, foi levada ao seu novo quarto. Não era grande, mas definitivamente era melhor do que a habitação da maioria dos moradores do palácio, talvez mais espaçoso do que o de alguns nobres menores da corte, e a melhor parte: era próximo ao apartamento real.
Foi Pamela quem a mostrou o local, ela se apresentou como responsável pela limpeza do quarto e bem estar de Villanelle, não era uma aia exclusiva dela, mas era mais do que as expectativas que tinha ao se alistar para a linha de frente de um exército, sua ascensão estava sendo rápida, mesmo que dolorosa e sacrificante. A criada não era jovem, mas não deixou de despertar a atenção da mais nova cavaleira da guarda. Em especial os lábios carnudos – como os da princesa – que docilmente lhe davam as explicações necessárias sobre como seria sua a vida no palácio, e os cachos escuros – como os da princesa –, mesmo que devidamente presos, como era necessário em sua posição.  Antes de retirar-se para seus outros afazeres,  certamente era uma lista extensa, entregou os uniformes confeccionados especialmente para o corpo em recuperação (mas ainda frágil e emagrecido) da assassina, roupas de baixo e alguns vestidos para os momentos de folga, tudo o que precisaria, tendo em vista que nada possuía.
Villanelle foi orientada para esperar em seus aposentos, ao final do dia Jess iria ao seu encontro para dar mais detalhes sobre sua nova ocupação, mas era difícil conter a empolgação: a coroação de Eve era no dia seguinte.

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Analgesia*: condição em que se percebem estímulos dolorosos, que não são interpretados como dor, ger. acompanhada de sedação sem perda da consciência.

Desbridamento**: retirada de tecido desvitalizado (que não é viável, está sem vascularização, morto) ou de corpo estranho de uma ferida.

Espero que estejam gostando!
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