Depois de passar as férias sob as ruínas do convívio social com os meus familiares, o escritório parecia uma continuação da tortura psicológica que me seguia desde o nascimento. Os mesmos lábios que professavam palavras de ódio durante todo o ano, eram os mesmos que saudavam alegremente a minha volta. Os mesmos braços fortes e grotescos que se levantavam para ameaçar a classe dos mais fracos, eram os mesmos que, agora, me envolviam em um terno abraço. Aleivosia? Talvez. Isso, ou acreditar que todos eles, de fato, amadureceram enquanto estive fora.
Quando fui contratada para trabalhar como telemarketing em uma companhia de colchões ortopédicos, há quase quatro anos, me deixei ser iludida pelo fato de que o meu corpo seria poupado das agressões dos tantos valentões que me perseguiram durante toda a minha infância. Mas me enganei. Os valentões estão por toda a parte. Geralmente, são lobos que não escondem que são lobos. Estão sempre rodeando as ovelhas, com os dentes à mostra e as garras afiadas. As ovelhas, por sua vez, ficam em estado de submissão e são incentivadas pelos próprios pastores a criar uma relação de amizade que jamais vai existir. Ao menos não enquanto os lobos forem lobos e as ovelhas forem ovelhas.
Havia uma certa competição entre os mais de vinte funcionários para saber quem estaria entre os cinco melhores vendedores e, obviamente, receber uma boa comissão e um quadro com uma foto pendurada em uma das paredes. Aparentemente, eu era a única ovelha perdida que não me importava com isso. Me mortificava com as mentiras que rondavam o meu trabalho, como o fato de dizer que um colchão um pouco mais duro que os outros traria rejuvenescimento à quem o usasse. Todo mundo já tinha na ponta da língua o discurso perfeito para convencer os clientes – que, na maioria das vezes, eram idosos em um estado deplorável de saúde – o que fazia com que eu me sentisse cada vez mais distante do rebanho.
Questionava todas as instruções que nos eram passadas pelo nosso chefe, principalmente aquelas que seguiam um roteiro tão perverso e manipulado a ponto de enganar velhinhos indefesos. Aparentemente, o fato de eu ser assim incomodava os outros. E eu era sempre reprimida com os argumentos de que era controversista demais e ambiciosa de menos. Talvez eu devesse sair de lá? Sim! Mas o que me prendia era exatamente o fato de poder conversar com os idosos.
Isso porque eu era completamente diferente.
A minha mãe estava prestes a morrer na sala de parto enquanto eu nascia. Ela tinha fortes dores de cabeça e muitas convulsões, e todo mundo tinha quase certeza de que ela morreria. Ela estava com baixa oxigenação, hemorragia e insuficiência cardíaca, enquanto um bebê de 3,2 kg saía de dentro dela. Mas, no primeiro instante, assim que fui retirada e colocada em seu peito nu, algo surreal aconteceu: ela se recuperou. Eu, por outro lado, comecei a morrer. Então um enfermeiro me socorreu às pressas e, assim que me tocou, algo surreal aconteceu outra vez: era ele quem estava morrendo. E morreu.
Não sei explicar como isso aconteceu, nem sei como ainda acontece, mas sou capaz de absorver a doença dos outros e transferir para outra pessoa. É horrível, eu sei, mas assim que a ponta dos meus dedos entra em contato com alguém doente, imediatamente a absorvo para mim e eu tenho aproximadamente dez minutos para transferir a doença ou ela ficará para sempre comigo.
A minha mãe queria que eu fosse médica, mas nunca tive estômago para jatos de sangue e órgãos à mostra. Nem disposição para passar horas e horas estudando para garantir uma vaga em uma faculdade de presunçosos. O que eu gostava, na verdade, era de poder conversar com idosos e ajudá-los de alguma forma.
— Essa é a lista de pessoas da semana – o meu chefe disse, jogando a pasta em cima da minha mesa. — Seja eficiente dessa vez, ou estará no olho da rua. Lembre-se que somos uma empresa que vende colchões, e não um disque-terapia.
— Tudo bem – murmurei.
— E melhore essa cara! Sorria!
Peguei a planilha e deslizei o dedo sobre os 250 nomes. Precisava fazer com que 50% daquelas pessoas comprassem um colchão. Todos os meus colegas de trabalho já estavam fazendo as ligações, competindo, mas eu nunca tinha pressa.
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Uma Nuvem para Dois
Kısa HikayeDafne é atendente de telemarketing numa concessionária de colchões ortopédicos, e tem o dom de transferir a doença de uma pessoa para outra com um simples toque. Quando conhece Amélia através de uma ligação, começa a questionar o sentido da própria...