CAPÍTULO 5

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As mudanças são dolorosas, mas necessárias. Traçar caminhos desconhecidos paralisa o meu corpo, mas depois de tudo o que aconteceu acredito que não posso esperar o pior acontecer, acredito que é hora de deixar tudo no passado e a partir de hoje pensar no futuro.

Encaro meu reflexo no espelho do banheiro no Museu, notando a minha palidez. Abro a torneira e apanho um pouco de água com as mãos em formato de concha. Lavo meu rosto e o seco.

Volto-me para o corredor onde encontrei o colar, para observar outros pontos que à primeira vista não consegui encontrar. Inundada de determinação procuro algo familiar e ao seguir os meus instintos paro em frente à um quadro antigo. Os detalhes da pintura a tinta óleo destacam o estilo impressionista que é conhecido pela riqueza de cores sobre a tela.

A nostalgia agarra o meu peito ao encarar essa pintura, não apenas pelo significado que ela representa, mas também porque lembro-me do tempo em que minha avó era viva. Seu passatempo preferido era a arte, e suas mãos deslizavam o pincel pela tela criando vida. Fui apresentada desde cedo aos grandes pintores como Claude Monet, Pierre August, Édouard Manet, Edgar Degas e Paul Cézanne.
Analiso os olhos marcados dos homens no quadro e o brasão cravado na tela.

Leio a descrição da pintura e um sorriso se forma em meus lábios. Estou cada vez mais perto de encontrar a verdade, mas o que me alivia nesse momento é saber que não estou enlouquecendo.

Todas as pessoas do meu sonho realmente existiram, mas preciso saber a história completa. Em silêncio caminho em direção a uma mulher com uniforme, acredito que ela deve ter mais informações sobre a família Mardell. Ao me aproximar a funcionária do museu cumprimenta-me com um sorriso no rosto, mostrando grande simpatia.

— Boa tarde, meu nome é Luciana, em que posso ajudar? — Sua voz soa cansada, mas isso não a impede de ser sorridente.
— Olá Luciana, estou fazendo uma pesquisa de história sobre a família Mardell, mas não encontrei muitas informações na internet, poderia me ajudar?
— A internet é um ótimo meio de pesquisa, mas nada comparado aos livros antigos! Me acompanhe por favor. — Ela diz apontando em direção a uma porta fechada que mal notei quando cheguei por aqui.
— Claro. — Respondo, seguindo-a.
Observo a mulher atravessar a porta de madeira e acompanho seus passos. A entrada leva até uma sala que pelo lado de fora não parece grande coisa, mas por dentro cobre uma parte extensa. O lugar está cheio de prateleiras antigas, com livros e alguns objetos que estão expostos em vitrines.

Uma arma antiga chama minha atenção e por algum motivo consigo ouvi-la disparar, como se revivesse aquele momento agonizante do meu sonho. Volto a minha atenção para Luciana, que vasculha uma das prateleiras em silêncio.

— Aqui está! — Ela exclama de repente ao apanhar um livro. — Bom, nesse livro conta a história de uma das guerras mais complicadas que o Brasil enfrentou no período republicano.
— A família Mardell participou dessa guerra? — Indago curiosa, ao encarar a capa vermelha em couro.
— Sente-se, vou contar toda a história da guerra. — Luciana gesticula com as mãos, demonstrando certa empolgação. Acredito que ela encontrou o trabalho perfeito.

Ouço sua voz atentamente, mas sinto meus olhos se pesarem aos poucos. Será que vou desmaiar? O peso agarra o meu corpo e aquela voz clara torna-se distante aos poucos, luto com afinco para me manter no presente, mas sinto que estou sendo levada novamente para outra realidade.

Tudo fica escuro e de repente acordo novamente no campo, mas desta vez algo está diferente. Ouço ao longe a Luciana narrando a história, porém também consigo vê-la vividamente como se já a conhecesse de alguma forma.

“1893 – Sertão da Bahia.

Antônio Vicente Mendes Maciel, conhecido como Antônio Conselheiro criou a comunidade Arraial dos Canudos que habitavam 30.000 pessoas. A sociedade independente desenvolveu um sistema autossuficiente, baseado no cooperativismo que por meio de seu crescimento tornaram-se um grande centro da economia do sertão da Bahia.
Antônio Conselheiro também era conhecido pelos seus ensinamentos religiosos que eram empregados aos povos da cidade independente. Seu filho mais velho, Henrique Mendes Maciel e sua Filha Victória estavam ao seu lado e o ajudaram a construir o movimento agrícola que criava rotatividade nas terras do sertão.
Nesta época ex-escravos vagavam pelas estradas do sertão a procura de terras onde pudessem viver. Antônio Conselheiro os abrigou e consolidou seus conceitos aos andarilhos, garantindo-lhes a salvação eterna em outra vida. Convenceu-lhes também que sairiam da miséria a partir da liderança do caboclo sertanejo e sua família. Tendo em vista a evolução da pequena cidade, houve constantes migrações de povos até Arraial dos Canudos.
O clero e os latifundiários da região desaprovaram todas as atitudes tomadas pelo líder dos Canudos que caminhavam em direção oposta ao sistema autoritarista imposto pela República.
Com o aumento da população na comunidade autônoma criou-se uma organização político religiosa liderada pelo Conselheiro, paralela à república e a igreja. Em contrapartida houve a Proclamação da República e a instalação do regime federativo que abominava as ações do caboclo sertanejo.
O crescimento da cidade independente trouxe grande impacto e o sistema de governo encontrou a oportunidade de cobrar impostos da civilização simples que ganhou força após o trabalho em conjunto de seus moradores.
Conselheiro se contrapôs ao estado, negando-se a pagar os impostos e para impor suas decisões, queimaram documentos emitidos pelo governo.
A partir deste momento consolidou uma imagem negativa dos canudos. Onde o governo os classificava como fanáticos religiosos, rebeldes monarquistas que prejudicavam a sociedade."

A leitura cessa de repente e toda a visão do campo vazio, tornando-se uma civilização foi dissipada da minha mente, fazendo-me voltar para a realidade. Luciana me encara curiosa e balanço a cabeça em negativa mantendo minha mente no presente.

— Qual a ligação entre a família Mardell e a guerra dos Canudos? E por que você parou a leitura? — Indago curiosa, incentivando-a continuar.
— Bom, ela tem grande impacto no ano de 1896, no início da guerra dos Canudos, li esse trecho para você conseguir se encontrar com os personagens da época, porque assim sua pesquisa será mais fácil a ser descrita.
— Entendi, muito obrigada Luciana. Poderia pular já para o ano de 1896 então? — Peço para ela com um sorriso no rosto e ela balança a cabeça em positiva retomando a leitura.

“07 de novembro de 1896 – Sertão da Bahia.

O conselheiro e seus seguidores viram a necessidade da criação de uma igreja em seu território para melhorar as pregações messianistas da população, mas a madeira que servia para construção da igreja foi barrada pelo governo. Essa atitude trouxe desentendimentos entre os Canudos e os governantes.
A república observou as atitudes da população de Arraial uma afronta para o sistema, com isto utilizou-se o pretexto da revolta dos homens que solicitaram a madeira para assim iniciar a guerra.
Neste período houve quatro expedições militares às terras já habitadas pelos Canudos, onde o intuito era aniquilação dos povos. Os sertanejos uniram suas forças e nas três primeiras expedições derrotaram o exército.
Apesar das batalhas ganhas, Conselheiro viu-se fragilizado diante do resultado de mortos durante as três primeiras invasões. Temia o próximo bombardeio e visava a segurança de seus filhos que juraram proteger seu povo, tendo devoção ao pai até seu último suspiro.
Certa noite o líder dos sertanejos realizou uma patrulha nas margens de seu território para certificar a proteção de seu povo que descansava, preparando-se para próxima guerra. Conselheiro encontrou um acampamento suspeito próximo ao local e foi investigar.
Chegando no território percebeu uma bandeira fincada no chão e se perguntou quem seriam os forasteiros recém-chegados. Logo conheceu Albert Mardell, um senhor que estava de passagem com sua família para vender alimento na cidade.
Nesse momento o sertanejo pensou em uma maneira de solucionar seus temores e propôs ao comerciante uma oferta tentadora. Pediu-lhe que ao seguir até suas terras apresentaria sua família e seu povo. O senhor assentiu, curioso com a possível proposta que Conselheiro que foi esclarecida no momento em que se aproximaram de Arraial.
Conselheiro explicou ao senhor sobre o bombardeio que estava ocorrendo em sua cidade e compartilhou seus temores com o comerciante que ouvia tudo atentamente. A oferta então pareceu realmente satisfatória para ambas as partes, mas ainda deveria ser repensada pelo Sr.Mardell.
O filho mais velho da família Mardell apaixonou-se pela filha mais nova do sertanejo que inicialmente propôs a entrega de seus 5.000 homens, mas que ao ver outra oportunidade de salvar sua linhagem ofereceu a mão de sua filha. O senhor Mardell satisfeito com a proposta aceitou-a após pesar alguns fatores.
Victória a filha do Conselheiro desaprovou pela primeira vez as decisões do pai que propunha um casamento arranjado para salvar a vida dela diante a guerra, dizia-lhe que preferia morrer com honra ao invés de viver com a consciência que sua vida foi dada como dote. Seu irmão mais velho aconselhou-a, explicando quantas vidas seriam salvas pelo acordo e após relutar por algumas semanas, foi decidido que eles partiriam daquele lugar. ”

Diversas sensações invadem o meu peito e não entendo o motivo de tudo isso. Levanto-me ofegante, e sinto a minha garganta se fechar. Luciana nota o meu estado anormal e no mesmo minuto apanha um copo d’água. O líquido gelado desce pela minha garganta, criando um choque interno.

— Venha, vamos sair daqui. — Ela diz, me guiando para fora da sala. Sento-me em um banco e Luciana me encara assustada. — Está se sentindo melhor?
— S – sim.... — Respondo relutante. — Você sabe me informar como foi a morte da Victória, a filha do Antônio Conselheiro? — Seu olhar demonstra confusão e um sorriso invade o rosto dela.
— Então é essa respectiva pessoa que você procurava... — Diz estalando os dedos. — Infelizmente ela morreu jovem, dizem que seu marido atirou nela e em Ramon o filho mais novo do senhor Mardell e irmão do assassino.
— Que história intensa. — Digo com sinceridade sentindo-me aliviada por saber que não sou uma lunática. Meu sonho foi real como pensei desde o princípio.
— Vejo como um amor impossível que foi interrompido, mas a família de Victória acreditava em outras vidas, então possivelmente ela pode estar nessa época com seu amor verdadeiro. — Luciana comenta acreditando em suas próprias palavras.
— Isso realmente é uma loucura! — Levanto rápido demais, e sinto uma leve tontura.
— São apenas especulações, ninguém sabe o que realmente aconteceu naquela época, posso te ajudar em algo mais?
— Na verdade pode, você sabe onde a Victória foi enterrada? — Minha pergunta assusta a mulher.
— Você é uma historiadora árdua mesmo, não é? — Ela sorri nervosa. — Já faz dois séculos desde esse incidente, mas para sua sorte sei onde ela foi enterrada.
— Maravilha! Pode me passar o endereço, por favor? — Apanho na minha bolsa caneta e papel e entrego para ela que sorri com a minha ferocidade de pesquisa.
— Está aqui, mas devo lhe avisar que foi construído um convento em cima do cemitério em que ela foi enterrada, então não creio que isso será muito útil.
— Obrigada! — Um sorriso se estende em meu rosto e por impulso abraço a mulher a minha frente.
— Fico feliz em ter ajudado. — Ela se solta dos meus braços. — Preciso ir, boa sorte com sua pesquisa. — Ela se afasta e sigo o meu caminho.

Toda essa situação parece loucura, mas sinto que estou cada vez mais próxima de Victória, existe algo inexplicável que nos conecta, não vou descansar até entender todos esses acontecimentos da vida dela. Lembro-me que Luciana disse sobre outras vidas, será que isso é possível na realidade?

A minha vida toda fui crédula em relação a qualquer coisa ligada a religiosidade, mas depois de tudo o que senti e ouvi sobre uma pessoa que apareceu em meus sonhos e que realmente existiu me faz mudar os meus conceitos. Apanho o celular e disco os números do meu amigo que atende no primeiro toque.

— Vick você não vai acreditar em tudo o que descobri hoje!
— Conta logo, não me deixa curioso, Sa! — Ele diz impaciente e começo a rir.
— A garota do meu sonho realmente existiu.... E ao que parece foi mesmo assassinada como na minha visão, mas não obtive detalhes do que aconteceu com Edgar, o homem que matou Victória e que também era seu marido.
— Posso descobrir isso para você amiga, estamos juntos nessa empreitada! Mas me diga, descobriu mais alguma coisa?
— Na verdade descobri onde a Victória foi enterrada, acredito que se for até lá posso ter outras visões que me farão entender o que ela quer comigo.
— Isso é perigoso, o Rafa e eu vamos com você.
— Obrigada meu amigo! Mas tirando essa história do passado.... Queria te contar uma coisa, sabe aquele cara que me salvou outro dia no shopping?
— Sim, o que tem ele?
— Nos esbarramos no museu e o convidei para sair.
— Minha amazona acordou! — Ele grita animado.
— Bom, na verdade vamos comer apenas um cachorro quente, esse foi o gesto que encontrei para agradecê-lo.
— Sei.... Agradecê-lo. — Sua voz soa com malícia, seguida por uma risada do outro lado da linha.
— Para com isso! Não tenho segundas intenções.
— Se fosse você teria, segundas, terceiras e até quartas intenções, esse homem parece um príncipe.
— Tenho que confessar que ele é um colírio para os meus olhos, mas ainda estou casada.
— Mas não faz mal conhecer novos pratos mesmo que você já esteja acostumada com apenas um do cardápio.
— Que horror! — Começo a rir com o comentário do meu melhor amigo.

A conversa descontraída durou por alguns minutos, até que o meu amigo precisou desligar para entrar em mais uma sessão de fotos, como de costume ele se desculpou por algo que não deveria. Encaro o relógio digital que marcam 17h30min e penso no meu encontro com o Oliver. Pela primeira vez me preocupo com minha aparência e não me reconheço como pessoa.

Abro minha bolsa e apanho um pequeno espelho e passo um batom nude. Solto meus cabelos e caminho pelas ruas da Avenida Paulista, observando a diversidade de pessoas que caminham por aqui. Um sorriso invade meu rosto ao apreciar belezas e culturas distintas em um único lugar, transmitindo a essência humana, provando para a sociedade que não existe um único padrão a ser seguido.

O som da flauta ecoa pelos paralelepípedos da calçada, hipnotizando as pessoas ao redor que pausam suas vidas corridas por um minuto para apreciar a arte de rua. Me aproximo do indígena que toca e o observo atentamente manusear o instrumento com destreza, proporcionando uma melodia única.

Perdida em seu toque ( DEGUSTAÇÃO)Onde histórias criam vida. Descubra agora