Calum
Cheguei a casa sabendo que ainda não estava lá ninguém. Subi as escadas até ao meu quarto onde atirei a mochila para um canto, e me deitei na cama, encarando o teto. O dia tinha sido cansativo e não me apetecia fazer nada. Fechei os olhos para descansar e, talvez, até, dormir um pouco. Comecei a sentir o meu corpo a ficar leve, fazendo-o levitar a alguns centímetros de altura da cama. Não sei como, mas eu conseguia fazer coisas. Coisas que pessoas normais não conseguiam. Coisas sem explicação. Coisas como manipular objetos. Movê-los de um sítio para o outro, apenas utilizando a mente. Até me consigo fazer voar, se quiser. Uma vez pesquisei na internet sobre o que se passava, e todos os resultados encontrados apontavam para uma e única resposta, mutantes. Eu era um mutante.
Eu não me importava com o que eu era, até gostava. Era incrível fazer as coisas que eu fazia, e às vezes, até se tornava muito interessante. Havia apenas um senão. Ninguém, repito, ninguém, sabia o que eu conseguia fazer. Nem os meus pais, irmãos, nenhum dos meus amigos. Ninguém. Era melhor para todos, mas especialmente para mim. Não é que não confiasse neles, mas um segredo apenas se mantem segredo, quando dois sabem, e um deles está morto, não é? Desculpem a expressão, ouvi-a uma vez, não faço a mínima ideia onde, mas é totalmente verdade.
“Calum?!” Ouvi a voz da minha irmã mais velha, vinda do corredor, o que me fez logo cair na cama.
“Sim?!” Rebolei da cama, levantando-me e dirigindo-me à porta do meu quarto.
“Podes ir buscar o Nick à escola?” Abri a porta, olhando para ela. “A mãe disse que vai chegar tarde, por isso pediu-me para fazer o jantar.” Avisou-me. “Tens de ser tu a ir buscar o Nick à escola, antes que ela feche. O pai só sai daqui a duas horas...”
“Está bem, eu vou.” Assenti com a cabeça, e ela continuou o caminho dela, enquanto eu saía e fechava a porta do meu quarto. Desci as escadas, dirigindo-me ao hall de entrada, onde agarrei nas minhas chaves de casa, antes de sair.
O sol ainda não se tinha posto, o que permitia ainda ver bem a rua. Andei durante uns quinze minutos, pois a escola do Nick não era muito longe de casa. O Nicholas, ou Nick, como o chamávamos, era o meu irmão mais novo, ele tinha nove anos e, não por ser meu irmão, mas ele não era como os outros rapazes da idade dele. Aqueles garotos irritantes que pensam que sabem tudo e que são os maiores. O Nick não era assim. Ele era dado, bastante inteligente, humilde. Uma das melhores pessoas que eu conhecia. Era também por ser assim, que ele era gozado na escola. Os outros miúdos tinham inveja dele, e punham-no de parte. Ugh, que idiotas...
“Calum!” Senti dois braços agarrarem a minha cintura.
“Olá Nick!” Ri, olhando para o rapaz de cabelo escuro.
“Não sabia que eras tu que me vinhas buscar?!” Largou-me, com um enorme sorriso na cara, compondo os seus óculos. “Pensei que fosse a mãe.”
“A mãe vai sair do trabalho mais tarde hoje, por isso pediu à Agnes para fazer o jantar, e para eu te vir buscar.” Expliquei, enquanto fazíamos o caminho de volta a casa.
“Está bem.” Continuamos o caminho.
Depois de uns minutos de silêncio, olhei para o rapaz que vinha ao meu lado. Ele estava calado demais. “Então... Como correu a escola?”
Ele olhou em volta, antes de responder. “Bem.”
“Os outros miúdos ainda se continuam a meter contigo?”
“A... Às vezes...” Respondeu cabisbaixo.
“Não deixes que eles te afetem, Nicholas. Tu sabes o que vales, o que é muito. Eles mais tarde ou mais cedo vão perceber isso.” Senti-o levantar os olhos, pondo-os em mim. Um ligeiro sorriso apareceu na sua cara.
***
Acordei sobressaltado e a transpirar. Tinha tido o sonho mais estranho que alguma vez tive. Respirei fundo, tentando acalmar-me. Saí da cama, dirigindo-me, apenas em calças de pijama, à casa de banho do meu quarto, para lavar a cara. Abri a torneira, passando água pela minha cara. Ao voltar a fechar a torneira, reparei em algo no meu pulso. Algo que não estava lá ontem. Um pequeno símbolo todo preto, e pelo seu formato parecia ser uma pomba.
“Mas que-“ Abri a torneira, deixando a água escorrer pelo desenho, com intuito de o apagar, mas isso não aconteceu. Esfreguei-o com a minha esponja do banho, mas nada. A forma continuava intacta.
Passei então os meus dedos pela pequena pomba preta, e algo que não esperava aconteceu. Aquilo começou a brilhar, e comecei a ficar atordoado. Com alguma dificuldade, consegui chegar à minha cama, onde caí.
“Eles estão a chegar! Não temos tempo!” Na minha cabeça começaram a passar pequenas cenas, como num filme. Havia uma casa, e uma família lá dentro. Do lado de fora da cama, no céu, começaram a formar-se nuvens mais negras que a própria escuridão. “Joy, vamos, temos de o tirar daqui!” Um homem gritou. A voz e ele eram-me familiares. “O Terence está à espera com as outras crianças!”
Aquela cena mudou para outra, numa espécie de castelo. Todo o edifício tremia, causando a queda de objetos, e a família, formada por uma mãe, pai, e uma criança, continuava a correr, passando por portas e espaços. “David, Joy, rápido!” Vi uma mulher de cabelos louros, ao fundo do corredor, que logo também começou a correr, sendo seguida pela família. “Só falta o Calum!” Entraram num grande salão, onde havia mais pessoas, com mais seis crianças. Calum?! Espera...
“Temos de os mandar já. Eles são a nossa única esperança. A única esperança de Dovesia voltar a ser o que alguma vez foi.” Outro homem olhou para as pessoas, aproximando-se de uma espécie de feixe de luz enorme. Todas, as sete crianças, estavam agora ao pé dele. Quatro rapazes e três raparigas. “Chegou a hora...”
“Eu... Eu lembro-me.” Esfreguei a cara. “Eu lembro-me de tudo.” Sentei-me na ponta da cama. Eu não era um mutante, como dizia na internet, e como durante tanto tempo acreditei. A casa onde eu estava não era minha, e as pessoas com quem eu vivia não eram a minha verdadeira família. Eu não pertencia a este planeta. Eu não era humano. E não era só eu. Havia mais seis. Os meus amigos de infância. Eu tinha que encontrá-los, onde quer que estivessem. Tínhamos algo a fazer. Tínhamos um planeta para salvar. O nosso planeta. A nossa casa.