Capítulo 8 - "would you sit with me and just forget the world?"

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— Você está linda… — Minha mãe disse, segurando meu ombro. Olhei meu vestido amarelo, longo, eu me sentia a Bela, do Bela e a Fera, da Disney. Tudo bem, eu admito, era o tema da minha festa de quinze anos. Olhei meu all star de cano baixo
Sim, a história de hoje é minha festa de quinze anos. Era cerca de 17h, a festa iria até de madrugada, então me permiti acordar depois do meio dia. Minha mãe estava fazendo os últimos ajustes em tudo, para se trocar. No outro cômodo, Bia e Mari faziam o cabelo com as amigas do salão da minha mãe. Os meninos estavam tomando banho, combinamos de irmos todos juntos. Guilherme entrou no quarto, os cabelos molhados ainda e sem camiseta.
— Gi, sua mãe me contou que você não comeu de nervosa, então eu fiz um lanche para você, aquele que você adora. — Ele deixou a bandeja em cima da mesa. Lá estava dois sanduíches, com alface, tomate, cebola, frango desfiado com cenoura, maionese, mostarda e mel. — E o suco de laranja natural, Enzo acabou de bater pra você e o Paulinho adoçou.
— O que seria de mim sem vocês? — Perguntei, puxando ele pelo braço e dando um beijo estralado na bochecha dele, minha mãe saiu para começar a se arrumar. — Vocês são uns príncipes, sério.
— O seu “príncipe” está lá embaixo, nem te conto o que fez no cabelo. — Ele falou, se sentando ao meu lado e pegando um sanduíche para ele.
— Meu deus, ficou bom? — Perguntei, já sabendo o que meu “príncipe” ia fazer no cabelo.
— Todo mundo gostou. — Ele respondeu, ajeitando o cabelo no espelho. — Eu ainda não fiz a barba… — Ele passou a mão no queixo, que tinha alguns ralos pelos. O bigode fino dava os sinais de querer engrossar. — Acho que vou fazer, tenho que ficar bonito para as fotos.
— Como se essa meia dúzia de penugem fosse aparecer em alguma câmera… — Brinquei, mordendo meu sanduíche. Meu Deus, eu realmente estava faminta. — Chama a Marcela? Quero falar com ela.
— Dá azar isso aí, sabia não? — Ele brincou, se levantando e batendo os farelos do pão da calça.
— Isso não é só em casamento? — Respondi, no mesmo tom.
— Como se você não quisesse… — Ele murmurou. — Onde está o secador de cabelo?
— O que disse? — Ele realmente insinuou que eu queria me casar com a Marcela?
— Onde está o secador de cabelo? — Ele repetiu, se fazendo de sonso. Revirei meus olhos. — Achei! — Guilherme riu, se sentando de novo e começando a secar o cabelo. — Sabe, Gi, é estranho te ver tão grande assim. Te conheço desde que tu mal sabia falar, cara. — Ele não me olhava, estava fixo ao espelho enquanto ajeitava o cabelo. — Acho que não estou pronto para ver você crescer. — Guilherme me encarou, com um rosto indecifrável. — Mas é inevitável, cara, você tá enorme. — Os olhos dele encheram d'água e ele virou o rosto rapido.
— Ah não, Guiiiiii… — O abracei, sentindo vontade de chorar também. — Você é meu melhor amigo, o melhor, sério. — Beijei o rosto dele algumas vezes. — Mas eu espero que não faça nenhum discurso na festa se não eu vou borrar a maquiagem e sair horrorosa em todas as fotos.
— Ah, relaxa, discurso mais aguardado da noite não vai ser o meu não… — Ele riu, secando o rosto e terminando de arrumar o cabelo. Enzo apareceu na porta.
— Guilherme, arruma meu cabelo? Quero um topete maneiro igual o seu. — Pediu.
— Arrumo sim, vem cá.
Sorri e me levantei, indo pro outro cômodo para fazer minha maquiagem. Eu lembro de toda a ansiedade como se estivessem acontecendo agora, uma festa enorme, num salão enorme, com tanta gente e tudo tão, mais tão, perfeito. Foi um dia incrível e isso eu não podia negar. Viria gente de todo canto, gente da ginástica, da escola, gente do condomínio, filhos das amigas da minha mãe. Lembro da minha maquiagem tão natural e de como eu queria ver Marcela logo, mas ela parecia estar fugindo de mim de propósito. Só fui vê-la na hora da valsa. O buffet estava lindo, todo em azul e dourado, com a música tocando no volume certo e a playlist dava inveja a qualquer um. Cumprimentei todos eles com sorriso, nomes que até hoje eu sei: Paulo, Claudio, João, Daniela e Karine, Kamilla, Juliane, Lorena, Gina, Karina, Sabrina, Carolina Renata e Vitoria, Carla, Michellen, Vivin e tantos outros. Lembro do local com a luz perfeita, o cheiro de flores por todo o salão, do tapete na escada. Eu me sentia uma princesa.
Muitas vezes me perguntei como as princesas da Disney se sentiam ao descer todos aqueles degraus, com vestido enorme e um monte de gente esperando lá embaixo. Era quase 21h quando saí da entrada e me preparei no piso superior. Ainda não havia visto Marcela. Respirei fundo, minhas mãos tremiam. Meu cabelo preso, minha maquiagem, meu vestido, eu naquele momento era a própria Bela. Respirei fundo e escutei a música do DJ parar. Era minha hora. Comecei a descer a escada, sem olhar para o salão, uma mão segurando o vestido, a outra no corrimão. Todos gritaram. Os convidados foram a loucura ao me ver e eu sorri. Continuei descendo. Cheguei na curva da escada, me virei e me preparei para descer o segundo lance de escadas. Então, a música da valsa de Bela e a Fera começou a tocar numa versão instrumental. Não olhei para frente. Os aplausos e gritos sumiram. Cheguei ao fim da escada e ergui meus olhos. Lá estava ela. Com lindas botas, com a calça azul, um paletó invejável do mesmo tom. A blusa branca e uma irresistível gravata dourada. O cabelo estava solto, selvagem. A novidade linda: o cabelo loiro. Ela fez uma leve referência, num cortejo tímido e eu dei uma leve abaixadinha segurando o vestido. Marcela estendeu a mão para mim, me convidando para dançar. Meu sorriso não cabia em mim quando aceitei e ela segurou minha cintura e começamos a bailar no meio do salão.
— Você está linda hoje… — Ela falou, com aquele sorrisinho.
— Sabe que eu fico tímida sempre que me elogia, não sabe? — perguntei, baixinho.
— E você sabe que fica mais linda ainda vermelha? — Respondeu. Molhei os lábios, sorrindo. Ela sempre conseguia me deixar sem palavras.
Marcela era o príncipe que eu sempre quis ter. É príncipe que eu queria ter. Que eu pude ter. Que eu não quis ter. Marcela me conhecia de trás pra frente, sabia sempre o que fazer, estava sempre ali, é difícil lembrar de uma vida antes dela, acho que tudo começou com ela, e ficou sombrio sem ela. A vida era tão mais vida com ela do meu lado que eu me pergunto como não me toquei disso antes. Voltando a história: dançamos lindamente, por todo o salão, sorrisos, cheiros. Então, os outros 14 casais se uniram a nós e agora tocava “A Thousand Years” (sim, antes de virar moda tocar em festas de quinze anos). Todos meus amigos dançavam, Bia com Guilherme, Mari com Paulinho, Manu com Vitor, tudo tão lindo. Eu e Marcela éramos o centro e a luz baixou, focando os holofotes em pontos aleatórios e eu aproveitei quando sai de foco para me aproximar suavemente e dar um beijo calmo nos lábios frutado dela. Meu estômago se agitou com as borboletas, lembrei do aniversário dela a quase um ano, de como eu gostava de beijá-la. Aí caiu a ficha.
Caiu a ficha de que eu estava apaixonada. Que eu estava a muito tempo, que sempre estive. Desde a primeira vez que vi aqueles olhos de um tom tão único e sorriso tão discreto. Eu era apaixonada pelo jeito que o cabelo dela às vezes ondulava, pelo jeito que ela segurava a minha cintura, pelo modo como me tratava, me olhava e… com certeza, como me beijava. Eu queria ter descoberto isso antes do meu aniversário, ou então depois. As coisas não foram fáceis e pelo canto do olho vi meu pai me encarar estranho. Estranho ruim. Meu estômago gelou. Eu, talvez, não podia me apaixonar por Marcela. Pelos olhos, pelo sorriso, pelas mãos, pelo jeito que me tratava, me olhava e me beijava. Talvez nem deveria termos nos beijado. Lembro de pensar: Será que alguém viu? E se alguém viu? Meu Deus, o que estava acontecendo comigo, por que fui beija-la na frente de todos? Eu me senti mal. Muito mal. Me senti como se tivesse aprontado, como se tivesse feito algo muito, muito ruim. Olhei os olhos de Marcela e tudo parecia tão calmo e perfeito dentro da galáxia que ela guardava. Meu coração estava tão apertado. A abracei forte.
Esse momento da minha vida eu chamo de negação. Foi quando eu tomei consciência de quem eu era, de quem eu queria e de como eu me sentia. A possibilidade de estar apaixonada por uma mulher me fez querer chorar no dia, enquanto dançávamos eu me perguntava como eu poderia jantar no fim do dia com a minha mãe, ou ir nas missas de domingo com meu pai, como eu poderia viver sabendo que carregava um crime tão grande de mim? Infelizmente, nunca pensei como foi pra Brenda e Luizinha contar para os pais dela que se amavam. Sempre foi tão fácil. Não podia ser uma fase, porque estar apaixonada por Marcela era a única explicação para o que eu sentia. Mas esse amor doía. Esse amor me fazia sofrer. Esse amor fazia eu perder o controle. E se dói, se machuca, se faz mal eu não posso chamar de amor. Eu não amava Marcela. Eu não amava. Ergui a cabeça, encarando o espelho a minha frente. Me vi, pela primeira vez, livre dos flashbacks. Sentada à minha frente, a versão mais nova de mim vestida de princesa e chorando.
— Eu não amo Marcela Mc Gowan. — Ela sussurrava. Droga, eu estava alucinando. Porque caralhos (desculpa mãe) eu fui beber? Depois da valsa eu fui ao banheiro e chorei tanto aquele dia. Demorei para me recompor e sair de novo. Mas agora, quase dez anos depois, me encontrava numa situação parecida.
— Para de mentir. — Eu sussurrei, para a Gi de quinze anos.
— Eu não a amo. — Ela repetiu, sem me olhar.
— Não minta, Gi, isso só vai piorar tudo… — Pedi.
— Eu não posso amar ela. — Ela falou. Prendi a respiração.
— Não podemos. — Confirmei.
Minha cabeça voltou ao flashback. Eu chorando no banheiro, então tirando a maquiagem e dando a desculpa de não me sentir bem com toda aquela pintura no rosto. O buffet tinha sido liberado e eu caminhava para a mesa de meus amigos. Estava tão distraída. Trombei em uma menina.
— Opa, desculpa. — Falei. A encarei. Era Daniela.
— Tudo bem. — Ela escondeu algo atrás do corpo. Sorri.
— Está roubando docinhos? — Perguntei.
— A Karina que man… — Ela não terminou, Karina surgiu e tampou a boca dela com a mão.
— Ai, ai, Daniela, a mamãe já não te falou que é feio mentir? — Karina sorriu, amarelo.
— Podem pegar os docinhos, meninas. — Falei, sorrindo e deixando elas vendo quais seriam as próximas vítimas que devorariam.
Minha cabeça ainda estava meio aérea enquanto eu caminhava pelo salão, tinha tanta coisa para pensar… eu precisava de um tempo. Cheguei a mesa e Enzo me estendeu um copo de refrigerante. Guilherme, apesar de já ser maior de idade, preferiu não beber. Manu jantava em silêncio e Vitor e Marcela discutiam a qualidade da playlist da minha festa.
— Eu achei incrível. — Marcela falou, colocando outra garfada de salada na boca.
— Eu também adorei, músicas da disney são incríveis. — Vitor sorriu, comendo seu macarrão.
Marcela parecia tão distraída. Balançava o pé, mexia a cabeça, olhava ao redor, parecia que não tinha nada incrível para contar. Me sentei e roubei um pouco de comida do prato de Bia e Mari, não estava afim de voltar e servir meu prato. Não estava com tanta fome assim, também. Minha cabeça pensava em tantas coisas e ao mesmo tempo em nada. Respirei fundo, parecia que eu estava andando em círculos. Quando acabamos de comer, fomos a pista, quase uma hora depois. Já devia ser dez horas da noite. Ao som de Somebody To Love do Justin, olhei para Marcela. “Então vamos deixar que doa”, lembrei de ter dito isso para ela uma vez. Respirei fundo.
— Marcela! — Gritei, pelo som alto. Ela me olhou, confusa. — Vamos dançar! — Ela sorriu e se aproximou, indo pra pista comigo, ela tinha colocado um vans vermelho para ficar mais confortável, eu já usava um vestido amarelo fino e leve, que ia só até o joelho, eu queria curtir.
Dançamos e rimos, eu precisava daquilo. Eu precisa curtir aquilo pela última vez, porque na minha cabeça de quase 15 anos ali, eu teria que me afastar de Marcela. Óbvio que eu falhei no outro dia, mas naquela hora era minha decisão. Era primeira vez que dançavámos em público e isso fazia ela estar tímida, mexendo os pés num curto espaço e balançando o corpo. Meus all star pretos chuck taylor contrastava com o vans vermelho dela. A música acabou e começou a tocar They Don’t Know About Us e tudo que eu quis foi chorar. Mari se aproximou de mim e como boas directioners, gritamos a música alto. A playlist era realmente incrível. Cinco músicas depois, ao som de Smile da Avril Lavinge, Marcela se aproximou de mim.
— Você não disse que ia tocar rock? — Ela sorriu.
— E vai, Sereia. — Mexi o ombro, meu Deus, eu bebi refrigerante demais. — Precisávamos de algo para fazer esse povo levantar.
— E o que eu devo esperar?
— Suas músicas favoritas ou… — Fingi pensar. — As nossas músicas favoritas?
— Quer dizer que Gizelly largou Marília Mendonça para ouvir Nirvana, é isso mesmo? — Marcela sorriu, brincalhona.
— Não fala assim — Fingi ficar brava.
— Quem que olha para Kurt Cobain e ainda prefere Marília Mendonça?
— O Kurt é lindo, mas acho que prefiro cabelos claros… — Passei a mão nos fios do cabelo dela.
— O que está insinuando, Gi? — Ela molhou os lábios.
— Que eu com certeza beijaria o Guilherme ao invés do Enzo, ué — Brinquei, revirando os olhos. — Mentira, nunca beijaria o Guilherme. Ele é meu melhor amigo e é como um irmão mais velho para mim.
— Ah, entendi...— Ela fez uma cara confusa. Droga, que que eu acabei de falar? A música acabou e Every Breath You Take começou. Salva pelo gongo.
— Viu? Eu disse que tocaria rock.
— Agora sim está falando minha língua. — Ela segurou minha mão e me puxou para dançar.
Agora ela parecia solta, viva, feliz. Algo estava diferente. Ela parecia mais… Marcela. Parecia a garota que dançava de meia no tapete da sala e me dava choquinhos e falava sobre a magia da eletrostática. Ela era essa pessoa que não ouvia a música, mas sim que vivia a música. Falava sobre a distorção da guitarra, do som do baixo, de como a batida da bateria era inovadora para aquele ritmo e que aquele álbum de 63 mudou o mundo do rock, que eu não poderia morrer sem ouvir as músicas mpb de 73 porque elas reinventaram os gêneros, que Cartola é o maior sambista da história, que o melhor do mundo se esconde em palavras sem tradução. Que toda estrela tem uma história, e até mesmo o funk tem sua cultura. Marcela era um livro que eu não cansava de ler. Dançávamos, brincávamos.
Quando Footloose começou, Marcela puxou o blazer azul pra frente, como se de repente interpretasse algum dos motoqueiros de filmes antigos. Os pézinho começaram os passos estranhos e ela girou nos calcanhares. Ri alto, o que ela estava fazendo? E onde aprendeu a dançar daquele jeito? Me deixei levar quando ela segurou minha mão e me fez rodar, fazíamos as típicas coreografia dos anos 60s, com pequenos chutes no ar e balançando as braços. O cabelo estava bagunçado, balançando de um lado para o outro. Quis saber o que estava acontecendo por trás daqueles olhos cor de tudo. De rock antigo, fomos para pagode, e eu não preciso dizer que ela estava animada demais. Guilherme sambava animado com Mari, Bianca era a própria Morena do tchan. Marcela sambava sorrindo e eu a segurei pela gravata. Sorri, puxando ela e virando de costas, fazendo o corpo dela grudar no meu, sambamos juntas.
Esse dia tem tanta coisa incrível para falar, tanta dança, tanta piada, mas só faz sentido pra quem viveu esse dia comigo. Meu aniversário de quinze anos foi uma montanha russa de sensações e sentimentos. Eu chorei no banheiro, eu tive crise de riso com Guilherme dançando a dança da mãozinha e de Enzo sendo a própria Morena do tchan (desculpa Bia). Mas, com certeza, o que me marcou nessa noite foi o fim da festa, onde me sentei no meio fio, sentindo calos nos pés e esperando a galera toda ir embora pra ir pra casa. Marcela sentou do meu lado, e sem dizer nada, me estendeu o fone. A música começou a tocar e eu deitei a cabeça no ombro dela. Ela parecia ler minha mente. “Chasing Cars”. Um golpe covarde, eu diria.
— If I sit here, if I just sit here, would you sit with me and just forget the world? — Ela cantou, fazendo referência a estarmos sentadas na rua. Olhamos o céu, estava tudo tão lindo, o perfume dela parecia tão único no mundo todo.
Sim, eu me sentaria aqui e esqueceria o mundo com você. Era tudo que eu queria na verdade: esquecer de tudo com você. Completei o diálogo com inúmeros textos sobre o que sentia por ela e por que isso machucava tanto. Porque o amor que sentia me machucava e eu entendia o que ela disse aquele noite na barraca, sobre o amor doer. Mas, naquele momento, nada importava. O cheiro, o jeito, o abraço de lado, me acalmava. Ela com certeza tinha uma palavra para isso, eu devia ter perguntado.
Droga, Marcela, eu sinto sua falta.

Notas Finais

A História não é minha, é uma adaptação, a original é escrita por @xthezahir.

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