Capítulo 3 - "Você ficava só de meia, eu te chamava de sereia..."

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  — Você tem certeza que ela não te mordeu? — Guilherme perguntou enquanto Enzo olhava todo o meu pescoço pela oitava vez.
— Ela não é uma vampira. — Falei, já entediada com tudo aquilo.
— Você só quer saber de brincar com ela já faz uma semana, certeza que você não era tão branca. — Gui coçou o queixo, analisando.
— Não viaja.
Minhas tardes se baseavam em brincar com Marcela. E eles também nem sentiam muito a minha falta, Enzo estava na cidade de novo, e eu e Paulinho sempre somos os excluídos por acabar sendo mais novos. Talvez o Paulo sinta realmente minha falta, ele nem estava na rua hoje. Bia e Mari estavam sentadas na calçada conversando enquanto eu recebia o check-up anti-vampiros que os meninos haviam criado. Marcela tinha um trabalho da escola para fazer e não iria brincar até terminar. Guilherme tinha estranhado que agora eu sabia o que era um sabre de luz, as jóias do infinito e a Enterprise. Tudo graças a incrível coleção nerd da Marcela. Os dois concluiram que eu ainda não tinha sido mordida e me deixaram em paz.
— Eu nunca vi essa tal de Marcela. — Enzo disse, cruzando os braços. — Ela existe mesmo?
— Lógico que existe, Enzo. — Manu disse, revirando os olhos. — E se vocês fossem mais legais com elas veriam que ela é uma pessoa bem mais divertida que vocês.
Isso era fato. Marcela quase não saia para brincar na rua. As poucas vezes que fez isso, deixou todo mundo surpreso com as coisas que ela sabia fazer. Depois de muita conversa eu descobri que ela fazia ginástica na escola e era do time de futebol. Isso explicava o ritmo extremamente atlético que ela tinha. Depois de conversar, decidimos ir ao parque. Uma das músicas que costumava ouvir na casa da Marcela estava na minha cabeça, dos discos de vinil, 1993, como ela me contou um dia. Era um rock antigo que eu não sabia cantar ainda, mas a melodia ficava na cabeça. E qualquer coisa ficava muito mais legal se eu imaginasse ela como trilha sonora. Chegamos no parquinho e estava algumas crianças. Reconheci elas, era o novo grupinho do condomínio.
Eu não preciso dizer que minha turma tinha rixa com a deles. Daniel, Ivy e Gabriel, ambos de 7 anos e Flay  de 9. Guilherme bufou em vê-los. A gente se aproximou, como se fossemos os donos do playground (e, convenhamos, nós somos os donos do playground). guilherme franziu o cenho pro Gabriel de cabelo enrolado.
— Sai do escorrega. — Ele falou, cruzando os braços.
— Me obrigue. — O outro, que era do mesmo tamanho do meu amigo repetiu o gesto.
— Estão no nosso esconderijo! — Bia apontou para Flay, que estava lá em cima, na varanda da nossa casinha. Meu sangue ferveu no meu pequeno corpinho de seis anos.
— A gente vai acabar com vocês! — Guilherme cerrou os punhos.
— Tenta, magrelo! — Daniel saltou da estrutura que tinha e parou ao lado do seu amigo cacheado.
— Vamos fazer assim, quem ganhar a corrida fica com a casa. — Manu sugeriu. Sorri, ninguém vencia do nosso Guilherme.
— Feito! — Daniel sorriu, metido. Ivy olhava tudo de longe.
— Se um de vocês ganharem de todos nós, vocês levam a casa. — Manu fez as regras e todos concordamos.
Daniel então se posicionou, indo contra a Bia. Ele ganhou, e todas as outras até chegar a vez do Guilherme. Depois, Flay refez as corridas, perdendo para Bia. Veio então o Gabriel Cacheado perder para o Guilherme. Foi a vez, então, da garota misteriosa. Ivy chegou com seu olhar 007. Ela venceu todos, um atrás do outro e antes mesmo de chegar sua vez, Guilherme parecia nervoso.
— Eu acho que vou perder.... — O lábio inferior dele tremeu, como sempre acontecia quando ele segurava o choro.
— Você vai ganhar, é o melhor! — Bia incentivou. Nós nos olhamos. Nós sabíamos que aquilo não era verdade.
Quando Guilherme se posicionou, ele estava inseguro. Sua mão estava inquieta, os dedos batiam contra a perna. Respirou fundo antes da Manu apitar. A cena aconteceu em câmera lenta, Guilherme disparando, com um rosto concentrado, e a garota logo atrás. Juntei as mãos perto da boca, vendo os dois baterem os tênis no chão e a poeira subir. Os fios curtos do Guilherme estavam todos para trás, ele nunca se esforçou tanto. Mas a partir da metade do percurso, a garota pegou vantagem. Ele notou, e então perdeu o ritmo. A garota ganhou e Guilherme mordeu a parte interna do lábio inferior. Enzo já havia perdido e se aproximou do amigo, o abraçando. Eu estaria mentindo se dissesse que aquela casinha na árvore não era importante para nós. Os meninos haviam se empenhado tanto, a Bia tinha se empenhado tanto. Eles passaram um final de semana inteiro decorando e pintando a casinha. Senti vontade de chorar. Olhei em volta, procurando Mari, mas ela não estava em lugar nenhum e eu precisava de um abraço.
— Ei — Chamou uma voz atrás de mim. Me virei, ao lado de Mari estava Marcela, com seus tênis e legging, a roupa de sempre que vinha ao sair para brincar. A camiseta de hoje era da banda da música que não saia da minha cabeça: Aerosmith. Era da tour de 1970 e ficava enorme nela, provavelmente porque só vendia em tamanho adulto. Futuramente, em sua adolescência, Marcela teria uma coleção de roupas de bandas que deixaria qualquer um com inveja. Sorri. — Você tem que ganhar de todos do grupo. Ainda não ganhou de mim. — Ela deu aquele sorriso sem mostrar os dentes e dessa vez foi diferente. Era o sorriso de sempre, mas me fez sentir algo novo. Meu estômago de seis anos revirou e eu achei que fosse porque estávamos salvos, a casinha era nossa, ninguém ganhava da Marcela em nada.
Ivy molhou os lábios, como se tivesse cansada de tudo aquilo. Marcela parou ao lado dela e alongou rapidamente as pernas, olhou para mim e piscou. Senti minhas bochechas ficarem vermelhas, Guilherme a encarava como se ela fosse Luke Skywalker e estivesse prestes a destruir o último Sith. Eu não preciso dizer que Marcela venceu, com vantagem visível desde o início da corrida. O que me incomodou naquele dia, porém, foi quando ela ergueu os braços, fazendo pose de vitória e abrindo o maior sorriso que já vi naquele rosto, os olhinhos fechando, o primeiro a abraçá-la foi Guilherme. Ela o abraçou com um braço e Bia logo se aproximou para o outro, a cercaram. Estávamos eufóricos. Olhei de longe. Eu e meu pequeno corpinho nao acharia um pedacinho naquele abraço lotado.
A felicidade do dia foi, então, quando todos se afastaram dela. Marcela caminhou até mim, com o mesmo sorriso enorme no rosto, e me abraçou. O perfume eu me lembro até hoje (ela não trocou a combinação): um perfume floral, mas não doce, um amadeirado marcante, o cheiro de shampoo de criança, um toque cítrico que eu não sei de onde vem (acho que é do cabelo), e por fim um leve e harmônico perfume de menino, masculino porém infantil. E, claro, não podia faltar: o fresco cheiro de menta dos seus malditos dentes perfeitos (depois descobri que é por que ela tem mania de mascar chiclete de menta, ou de chupar balas de menta).
E eu sei o que você está pensando, a resposta é sim. O nosso primeiro beijo teve sabor de menta. Mas não é hora de falar dele, não ainda. Tem história pra contar antes do beijo, entre elas, uma bem importante: meu aniversário de nove anos. Sim, vou pular dois anos de aventuras, vampiros, halloweens, pegadinhas e risadas. Não que esses dois anos não tivessem sido importantes, mas eu preciso ser objetiva ou isso aqui nunca vai chegar no ponto atual da história. O ponto atual da história é eu chorando no banheiro de uma social da empresa do meu marido, em 2020. Onde estamos? Minha festa de nove anos em 2007, 15 anos atrás.
Meu aniversário era (e ainda é) minha data favorita do mundo. É quando celebramos mais um dia de vida, de história, de lembranças. Lá estava eu no meu vestido rosa e minhas sandálias dourados, laço no cabelo. Minha ansiedade estava duvidando entre a Marcela tocar a campainha e o bolo que estava na minha geladeira desde a noite anterior. Revezando entre olhar a porta e a cozinha, vi pela janela ela chegando. Usava um vestido florido em tons pastéis, foi a primeira vez que vi ela de vestido. O cabelo agora não era tão longo e estava preso com uma tiarinha. Nos pés, all star azuis contrastavam com as flores da roupa. Ela sorriu, aquele sorriso de sempre que até hoje eu não entendo porque é tão intenso, me abraçou forte, eu estava alguns poucos centímetros maior que ela, e ela já tinha onze anos. Os olhos não eram tão cor de mel (ou de poste de meia-luz) como antes. Uns poucos (bem poucos) tons mais escuros agora fazia moradas naquelas íris. Os lábios estavam mais corados que os normais, como se tivesse passado batom.
Ela, então, me abraçou forte, me desejou parabéns e me deu um presente. Este é o ponto importante desse dia. Marcela me entregou uma pequena caixinha, delicada, feita de madeira. Acho que foi o presente mais bonito que já recebi. Ela me deu um colar de pedra do sol que vinha com um colar menor com um cristal azul céu. Era em obelisco, com um cordão preto trançado e bastante confortável de usar. Sem entender, olhei para ela. Agora, ela segurava o próprio colar: uma pedra clara numa corrente maior e uma escura na menor.
— Você é o Sol. Com o céu azul. — O rosto dela ganhou um tom avermelhado nas bochechas. — Eu sou a Lua. E as estrelas.
— Noite e Dia. — Sorri, antes de abraçá-la.
Os olhos da Marcela brilhavam de maneira parecida com a da minha pedra do sol quando estavam na luz, e isso fez eu pegar um amor maior ainda por aquele tom sem nome que eu só encontrava nas íris dela. Aquela cor de planeta, de universo, de um mundo inteiro esperando a ser descoberto. O colar eu tenho até hoje. Ela também. 15 anos. Na época, fizemos dessas pedras hippies nossos amuletos da sorte. Era algo que ligava a gente, algo físico, existente. No futuro, quando perdemos o contato e ela estava em outro país, às vezes me pegava segurando a pedra na mão, e algo me dizia que ela também o segurava. Era algo inexplicável: quando uma tocava na pedra, segundos depois a outra tocava também. Era como um sensor entre nós. No fundo, esses colares apenas mostraram nossa ligação de forma física porque o ser humano é um tanto chato: só vendo pra crer. A música que ela sempre deixava tocando no vinil, da antiga banda e do antigo álbum de 1993 ecoava e a acústica do banheiro dava um efeito de eco no som, fazendo meus flashbacks ainda mais profundos. Minha mão não soltava o colar no meu pescoço.
Em algum lugar do universo, Marcela fazia o mesmo. Nunca falhava.
Nunca.

Notas Finais

A História não é minha, é uma adaptação, a original é escrita por @xthezahir.

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