Prólogo

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"Todas as famílias felizes são iguais, mas as famílias infelizes são cada uma à sua maneira". Esse incipit* de Anna Karéninea ecoou minha infância dolorosa, da qual tenho lembranças tanto psicológicas quanto físicas.

Eu tinha três anos quando meu pai morreu. Minha madrasta diz que ele morreu de câncer de pulmão porque fumava muito. Mas mesmo aos três anos de idade, nunca me lembro de ver meu pai doente ou com um cigarro nas mãos... Na verdade, não tenho lembrança nenhuma da minha infância...

Minha mãe morreu durante o parto. Então até hoje, moro com minha madrasta e minha meia-irmã, Karin.

Tenho origens japonesas, mas nasci em França. Tinha tudo para dar certo. Mas, o começo de um sonho, deu tudo errado.

Meu relacionamento com minha madrasta - Karui Haruno - foi e ainda é marcado por muita violência verbal e física. Ainda pequena quando eu fazia xixi na cama, ela me fazia tomar banho com água fria para me punir.

Talvez seja compreensível, pois tive que aprender de uma maneira ou de outra.

Mas quanto mais o tempo passava, ela se tornava cada vez mais violenta. Quando eu tinha quatro anos e não reconhecia as letras do alfabeto, ela me dava soco. Desde os cinco anos de idade, golpes de cinto e chicote fizeram minha vida cotidiana, acompanhados de palavras que ainda hoje fazem ecos na minha cabeça.

Apesar de tudo, eu e a Karin estudamos nas melhores escolas de Paris, além de fazer muitas atividades extra-escolar. Estávamos preparadas para brilhar na sociedade. Só que a pressão em torno dessas atividades nos faz muitas vezes terminar nossos dias às 22 horas. É tudo muito intenso. E eu nem posso reclamar, com medo de apanhar.

Apesar de tudo, intensifiquei meus dias para aulas de japonês. Eu queria pelo menos saber algo que me ligasse aos meus pais e às minhas origens.

Karui tem duas faces: a que ela mostra para a sociedade e a filha, e aquela que vira para mim. Quando temos visitas ela é super amorosa, gentil, terna. Em uma palavra: perfeita. Assim que nos encontrávamos sozinhas, no entanto, estava pronta para uma onda de violência verbal e física.

Tudo era bom para desencadear uma surra: uma nota abaixo da fatídica barra de 20 na escola, embalagens de doces encontradas nos bolsos do meu casaco, uma faixa mal executada no violino ou mesmo quando eu queria brincar com a Karin. Eram então gritos, insultos, golpes. Ela dizia em voz alta para quem quisesse ouvir que eu era filha de uma "putinha".

Eu não sei dizer o que a levou a me odiar tanto. É horrivel porque ela não consegue olhar para minha cara sem disfarçar o nojo. Parece até que ela está sendo obrigada a me suportar desde os meus três anos.

O castigo favorito dela é me trancar no porão por horas, sem luz e sem comida, afim de — muito paradoxalmente — "limpar minha mente e colocar as ideias ao claro".

Pouco a pouco fui me afastando da minha irmã. Ela também começou a ter medo deste lado de sua mãe portanto, começou a me evitar, mesmo quando estávamos sozinhas.

Com o tempo, a obsessão dessa mulher se tornou em destruir tudo o que eu fazia. Comecei a mostrar grande interesse em desenhar e eu não era tão mal. Aos 11 anos, era para mim uma maneira de desabafar. Eu tinha muita raiva acumulada dentro de mim mesma, e especialmente muita ansiedade. Mas muito rapidamente vi meus cadernos rasgados ou jogados no fogo.

Foi na minha adolescência que a agressividade da minha madrasta atingiu seu auge. Obcecada com a virgindade de "suas filhas", que tinham que "preservar-se antes do casamento", ela pedia repetidamente ao médico da família para verificar a integridade de nossos hímens, que ele felizmente sempre recusava.

Mas cá entre nos, aquilo era apenas uma desculpa para ela saber o que não deve e ter mais um motivo para me insultar de "prostituta". Além dos golpes, eram as palavras que me destruíram. Por que, por mais que digam que as palavras doem mais, eu não penso isso. Para mim não tem essa diferença porque embora a dor passe eu sempre fico com as sequelas no corpo para me lembrar.

E é mais fácil para mim, esquecer um insulto que ela fez há alguns minutos porque ela já vai renovando e não me da tempo de ficar pensando e lamentando. Seria engraçada, se não fosse a minha realidade.

Quando eu comecei a crescer e junto comigo as espinhas também, ela fazia questão de olhar para minha cara e dizer que as espinhas deixavam a minha testa ainda maior, ou que ninguém iria me querer e que também não é porque tenho olhos verdes que sou bonita. Me chamava de gorda, etc.

Lembro que meu primeiro namorado me beijou do lado de fora da porta da nossa casa e logo quando entrei levei uma sura e junto, esta terrível frase: "Você nunca será amada por ninguém. Você vai acabar se prostituindo nas avenidas da capital".

Há uma voz na minha cabeça que me julga e me diz porque eu não denuncio ela.

Mas o problema é que existe uma realidade que todo mundo finge não ver. A criança, desde que seja criança, ninguém acredita no que diz. O mundo adulto é completamente imune ao que uma criança pode dizer.

Eu falo por experiência. Muito rapidamente, tentei dizer o que estava passando em casa. Reclamei várias vezes com professores ou mentores de minhas atividades fora da escola. Foi inútil: como acreditar que uma criança de uma família burguesa e católica, tendo recebido a melhor educação e usando o equivalente a um salário mínimo em uma simples barrete de cabelo, pode viver um inferno dentro da propria casa?

Pior ainda, alguns adultos a quem eu confidenciei minha angústia não encontraram nada melhor para fazer do que conversar com minha madrasta, que garantiu que eu era mitomaníaca, que era apenas uma fase de rebeldia e ainda se vitimizou pelo fato de ser "muito difícil criar um filho que não é meu".

Mas depois eu entendi, que a única coisa que a faz realmente me suportar é o dinheiro do meu pai. Mas achei melhor me calar para evitar uma sura à menos porque ela não deixou passar despercebido eu ter ido contar para os outros e ainda me ameaçou se fizesse de novo.

Hoje, acredito que se minha madrasta tivesse sido apenas um monstro frio, as coisas teriam sido paradoxalmente mais simples: eu poderia simplesmente odiá-la e tudo mais. Mas, com a filha, ela era a mãe mais carinhosa e atenciosa. Na frente das amigas, eu conhecia uma mulher encantadora, engraçada, terna e espiritual, mas assim que nossos olhos se encontram, via o reflexo da mulher vingativa, rosnando e violenta. Isso me fez viver na constante ansiedade da renovação de um ataque de violência. E percebi que eu provocava a pior parte dela.

O que eu fiz para essa mulher ?

Dias, semanas, meses e anos se passaram e ainda estávamos nesse círculo vicioso. Agora, com meus 18 anos, depressão para mim se tornou uma rotina. Me fechei ainda mais acabando com qualquer chance de fazer amigos e me tornei completamente submissa, não por medo, pelo menos, não por mim. Posso sair de casa e nunca mais voltar, posso muito bem ficar sem a minha fortuna e posso recomeçar uma nova vida longe dessa mulher. Mas a única coisa que me impede é a Karin. Embora sua mãe estivesse com raiva apenas de mim e suas crises só diziam respeito a mim, nesses últimos tempos ela mudou muito. Ela já tentou várias vezes levantar a mão sobre ela, mas sempre fui mais rápida e conseguia a proteger mesmo que isso queira dizer eu levar em dobro.

As coisas estão ficando cada vez mais deploráveis agora que nos mudamos para o Japão. Duas semanas atrás, madame decidiu que teríamos que deixar a França. Não tive nenhum problema, pois fui transferida para uma boa faculdade. Pessoalmente, não tinha nada a perder, nem mesmo amigos ou parentes que nunca conheci.

Mas se eu estava feliz em mudar de ar, rapidamente perdi essa motivação. Em uma semana, vi mais pessoas do que em um ano. Durante uma semana inteira, dia após dia, a mansão ficou cheia de centenas de pessoas, entre elas magnatas, muitas mulheres, traficantes e outros. De primeira, fiquei confusa com a futilidade de comprar uma casa enorme para que apenas 3 pessoas morassem
nela. Mas eu rapidamente entendi quando ela a transformou em uma espécie de cassino e bordel. Havia mais álcool do que grãos em dois sacos de arroz. E a pior parte é que, em todos os cantos, literalmente, você via pessoas fazendo sexo ou usando drogas. Até agora tudo parecia "normal", mas eu realmente comecei a surtar quando notei que um quarto dos homens estavam armados.

Será que é nessa parte do roteiro que ela se cansa de mim e decide mandar me matar ?

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