Capítulo quatro: Felícia.

6 2 0
                                    

Esdras, dia A2 do ano AIC, 12:00 da tarde.

Isso é impossível, completamente impossível. Não há como ser verdade. Todos os livros que eu li estavam errados? Tudo que foi ensinado a nosso povo era mentira? Não... Eu me recuso a acreditar em tamanho absurdo dito por aquela inferior desprezível. Eu sabia que não deveria tratá-la com gentileza, pois, no fim das contas, é apenas uma selvagem imunda e inútil. Eu não consigo aceitar o que foi dito por ela.
Ando de um lado para o outro, trancado em meu quarto. Já ordenei que a Elisabeth e a Ully cacem a desgraçada incansavelmente. Passo as mãos por meu rosto, transtornado. Em seguida, observo meu reflexo no espelho. Aperto meu punho, então soco o vidro que se encontra à minha frente. Não pude me segurar, controlar a minha raiva. É a primeira vez que perco o controle de alguma situação. Me assemelho a um humano neste momento. Inaceitável! E é tudo culpa daquela infeliz...
Ouço batidas em minha porta, então abro-a impacientemente usando o comando mágico de uma das mãos. Ouço passos invadindo o meu quarto, mas não movo meu olhar para a pessoa que está entrando. Apenas encaro o espelho quebrado. Seus cacos no chão... Refletindo a minha fúria que, neste instante, parece interminável.
Então, ouço a voz rouca da Ully entrar por meus ouvidos.

-Já conseguimos localizá-la duas vezes, mas ela sempre consegue escapar de nossos braços. A imunda é muito mais ágil do que imaginávamos, majestade. Vim aqui solicitar sua autorização para apelarmos para reforços. 

-Façam o que for necessário. Qualquer coisa. -Gesticulo uma das mãos, apontando para a saída.

-Vá. -Falo rispidamente. Em seguida, ouço os passos apressados da moça se dirigindo para fora do cômodo.
Minha respiração está acelerada, não consigo me concentrar para me acalmar. Não consigo. E isso... me assusta.

14:00.

Depois de presenciar a incompetência de certos funcionários do palácio que se recusaram a ter contato com a imundície daquela humana, resolvi caçá-la eu mesmo. Fui em direção ao jardim, já que, aparentemente, era o único lugar que a selvagem sabia a localização. Procurei-a durante severos minutos, até encontrar as borboletas azuis novamente. Neste momento, soube que meu objetivo estava para ser cumprido. Abaixo de uma árvore com frutos enfeitadores vermelhos, localizei-a. Mas... Ela estava ingerindo esses frutos. Que tipo de ritual é este? Ela quer nos amaldiçoar? Se essa for sua intenção, então ela se arrependerá amargamente depois de presenciar os efeitos de meus encantos sob sua pele fraca.
Me aproximei lentamente da coisa, que, neste momento, olha para mim, mas age de maneira indiferente ao fingir que não estou aqui. Em seguida, ela mantém contato visual. Está sentada sob algumas folhas, com postura corcunda. Suas pernas estão abertas e um pouco curvadas, de modo que ela possa apoiar o cotovelo esquerdo em seu joelho esquerdo. Em sua outra mão, ela segura o fruto enfeitador, que está com um pedaço fora, o qual encontra-se em sua boca.
Ao vê-la, as lembranças do que foi me dito mais cedo retornam, todavia não consigo sentir tanta raiva como anteriormente. Sento-me de frente a coisa, e então, encaro-a até que algo seja dito por ela. Seus olhos navegam por mim durante alguns segundos. A curiosidade predomina em seu semblante, e já não consigo observar medo em suas expressões faciais.
E então, seus olhos param nos meus. Ela muda de postura, ficando com a coluna ereta. Suas pernas se cruzam e ela arruma seu vestido sujo. Sem desviar o olhar, ela dá uma última mordida no fruto e o joga numa pilha de outros que ela já havia ingerido. 

-O que você quer, majestade? -Ela diz, e pronuncia a palavra “majestade” com desprezo e ironia, apesar de ainda estar mastigando.

-Preciso que você colabore comigo, ou medidas severas serão tomadas. Seu comportamento de hoje foi inaceitável. Não acreditarei em suas mentiras, sei que tudo que você me disse foi apenas para me amedrontar.

Digo isso tentando convencer não somente a ela, como a mim mesmo também.

-Então... Eu não menti. Eu apenas usei a verdade pra te deixar com raivinha.

Ela diz, assustadoramente convicta.

Não respondo. Apenas desvio o olhar para a pilha de frutos avermelhados que está ao seu lado.  Parte da minha mente já havia processado um pouco da informação, mas a outra se recusava a aceitar. Não sei o que fazer ou o que dizer nesse momento.

-Eu fui meio infantil naquela hora mesmo, mas foi satisfatório ver sua cara de decepção. -As palavras saem de sua boca com um tom de deboche.

Sua sinceridade me espanta. E espanta mais ainda o fato de que, nessa conversa, vieram à minha mente algumas pontadas de pensamentos tentando me convencer de que ela não é inferior a mim. Entretanto, não deixo que essa linha de raciocínio se expanda.

-Eu posso te contar tudo, mas com uma condição.

Relutante, eu pergunto qual.

-Você precisa me deixar ir embora quando seus estudos idiotas acabarem. E você não pode me machucar. -Abro a boca para falar, mas ela me interrompe. -Sim, eu já sei que você não sabe o que é “machucar”, mas depois eu ensino.

Novamente, tento falar. E novamente sou interrompido.

-Ah, e eu também quero comida. MUITA COMIDA. -Ela aumenta os olhos ao dizer a última parte.

Mas... Eu não sei o que é “comida”. Ao abrir a boca para questioná-la, ela me interrompe pela terceira vez.

-Mentira, né? -Ela afasta seu corpo para trás. -Mentira que você NÃO SABE O QUE É COMIDA.

Permaneço em silêncio, mas dou um leve sorriso. Esse comportamento é deveras engraçado.

-Olha, quer saber? Dane-se. Vou procurar por aí, é impossível que não tenha. Pelo menos essas frutas encheram um pouco a minha barriga.

Ela aponta para os frutos

-Mas ainda estou com fome.

E continuo sem compreender esses termos que ela utiliza. Não sei o que é fome. Grr... Pareço um imbecil nesse cenário.

-Eu não vou dizer mais nada, é melhor. -Ela diz, sorrindo debochadamente.

Em seguida, se levanta e olha para mim, falando:

-Me mostre onde posso tomar um banho.

-Eu sei o que é banho. -Sorrio levemente por finalmente entender algo que essa desgraçada diz. 
Em seguida, me levanto. Preciso me concentrar mais, e não deixar que essa...

-Qual o seu nome?

Por que perguntei o nome dela?

-Meu nome é Felícia. -Responde, limpando o vestido sujo com terra.

Hum... Felícia.

Meu nome é Felícia (lembre-se).Onde histórias criam vida. Descubra agora