Capítulo sete: névoa.

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19:00

-Por que você não admite? -Diz uma voz ríspida.

-Do que estás falando?

-Do seu destino, Esdras. Por que não admite que tudo se tornará névoa?
...

-Tudo se tornará névoa... E você já começou a perceber, certo?

Não. Não. Não. Não. Não.

20:00

A Felícia ainda está dormindo. Eu não sabia que o período de descanso de um humano seria tão longo. Neste momento, estou numa cadeira do meu quarto, aguardando que ela acorde para continuarmos os estudos. Enquanto isso não acontece, faço anotações em minha agenda sobre seus comportamentos gerais no dia de hoje: seus hábitos, seus sentimentos, suas expressões faciais, cada ato que ela fez. Escrevo tudo detalhadamente, cada respiração fora do normal, cada frase que ela disse. Mas... há algo que preciso questioná-la: por que ela me agarrou inesperadamente depois da confusão com a Elisabeth? Seria uma forma de aliviar seu estresse acumulado?
Ela se mexe na cama, mas não fica consciente. A luz forte da lua, que invade o quarto pela imensa janela, ilumina seus lábios rosados. A flor que estava em sua orelha acabou caindo no chão após a humana se mexer tanto enquanto dorme. Seus cabelos estão completamente secos agora, e seu tom azulado me lembra do tom de minha pele.
Então isso é um ser humano... A espécie que é tão desprezada por nosso povo, a espécie que deveríamos tratar com desdém. Mas por que existe uma barreira em meu corpo e mente que me impede de fazer isso? Por que, mesmo com fúria por ter sido enganado por séculos, não consigo colocá-la no quarto humanizado, que arquitetei por tanto tempo? Por que não utilizo de sua vulnerabilidade para machucá-la e tortura-la? Por que sinto empatia por Felícia? Eu... não sei. Entretanto, não pretendo saber por enquanto.

20:30

-Pai?

-Diga-me, filho. -Sua voz, apesar de grossa, é aconchegante. -Ouvi de nossos soldados que você estava carregando aquela espécie imunda em seus braços. Você não se sujou? -Ele chega perto de mim e começa a passar as mãos em minha vestimenta. Sua barba branca combina com sua pele e seus olhos. Meu pai poderia se camuflar facilmente na neve, se desejasse.

-Está tudo bem. Preciso ter uma conversa séria com o senhor.

Sento-me numa poltrona confortável, e o rei numa maior atrás de uma mesa larga. Em seguida, ele coloca as duas mãos entrelaçadas sob o joelho dobrado e questiona o que tenho para falar.

-É tudo mentira. Tudo que nos foi ensinado durante séculos, foi desmentido em menos de trinta minutos pela humana. A espécie não sabe quem somos, portanto, a função de seu estado treva é externa a nós.
Ele permanece em silêncio, sua expressão é neutra. Não consigo decifrá-lo.

-Disserte mais sobre este tópico. -Sua voz possui um tom mais baixo que o de costume.

Vejo seus ombros tensionados e seu olhar vazio. Ele retira as mãos do joelho e as coloca sob a mesa, depois desentrelaça as pernas.

21:00

-Compreendo.
Eu realmente penso que ele está decepcionado, mas não deixa transparecer para que eu não o enxergue como um “fraco”, digamos assim.

Ao sair de seu escritório, me dirijo ao corredor escuro, mas que rapidamente é iluminado por flashs dos raios que começam a aparecer pela janela.
Bom, eu estava correto. Ele está furioso.

22:00

-Chega de mentir, Esdras.

Não gosto quando meu espelho fala comigo.


Esdras, dia A3 do ano AIC, 8:00 da manhã.

Ouço Felícia reproduzir sons estranhos, então desvio meu olhar da agenda e observo o que ela está fazendo.
Finalmente! Depois de horas a humana parou de dormir. Ela olha para mim, desnorteada. Seu rosto está um pouco inchado, com destaque em seus lábios, e ela passa as mãos nos olhos.

-Há quanto tempo que tu tá aqui? -Sua voz está mais macia que o de costume.

Faço uma anotação.

-Desde as 23:00 de ontem. Por que usaste um demasiado período de tempo?

Felícia ergue-se lentamente, apoiando as mãos em cada lado de suas coxas.

-Porque sou fraca. -Ela sorri levemente. -Hm... preciso de um banho e comida.

Ah... novamente.

-Tudo bem. Todavia, o dia de hoje terá como único foco estudar-te.
Ela assente.

9:30

-Aquilo que fiz se chama abraço. Eu tava muito assustada e desesperada, sabe? E você parecia ser o único a quem eu poderia “recorrer”. Fiz aquilo pra me acalmar, mas não é nada demais. Não vai se repetir. -Diz a humana, sentada na maca branca. Seus pés preenchem duas botas marrons e bem costuradas, e não conseguem encostar no chão por conta de sua estatura limitada. Em seu corpo, ela utiliza uma blusa bege de mangas compridas, que, por ser muito folgada, acaba pendendo em seu lado esquerdo, deixando seu ombro tatuado à mostra. Também utiliza uma saia alaranjada que não hesita em mostrar suas coxas. Em sua orelha, novamente posso observar uma flor, uma bela flor; Felícia provavelmente a pegou do banheiro, depois de sua higienização. Sinto a fragrância de sua pele sem fazer esforço...

-Majestade? -Saio de meus devaneios atípicos e desnecessários quando ouço sua voz.

-Perdoe-me, estava analisando alguns fatos. -Minto. Quero dizer, eu realmente estava analisando algo, não estava?

-Vossa majestade já ouviu falar no termo “assédio”?

-Infelizmente não. Poderias explicar-me?

Felícia, dia A3 do ano AIC, 9:50 da manhã.

Sinto-me mais aliviada ao explicar o que é assédio pro príncipe. Assim, fico mais garantida de que ele não faça isso sem querer.

-Felícia, eu observei uma cicatriz em um de seus braços. Poderia dizer-me como conseguiu esta marca?

Poxa, tocou na ferida. 
Tento responder, mas ainda existe uma relutância dentro de mim. Me sinto confortável em contar pra ele? Bom... a verdade é que eu “gosto” do Esdras. Exceto por ontem de madrugada, ele vem sendo extremamente gentil comigo, não me atacou nenhuma vez e ainda fez um trato que me deixou mais tranquila. Diferente dos outros insuportáveis, ele cuida de mim e não me trata como lixo. Além do mais, está aceitando aprender mais sobre os humanos e não quer ficar preso numa bolha. Me sinto bem perto dele, às vezes. O cara parecia ser um completo idiota no começo, mas ele está me provando o contrário, então... acho que posso contar.

-Um dia, vândalos invadiram a minha vila. Eles destruíram quase tudo, só não conseguiram porque eu e mais alguns moradores lutamos contra eles. Infelizmente, um dos caras tinha um facão, e não hesitou em cortar meu braço quando eu estava de costas. -Sinto meus olhos arderem de raiva. -Eles quase tiraram a vida de uma pessoa que eu amo, e eu nunca irei perdoar aqueles imbecis por isso. -Nesse ponto, já estou chorando por lembrar da quantidade de sangue que saía da barriga do Elder naquele dia... do terror que eu tava sentindo. Que ELE estava sentindo. 

Coloco as mãos em meus olhos, tentando disfarçar o choro, apesar de saber que Esdras percebeu. E então... eu sinto dois braços me envolverem levemente. Uma das mãos repousa em minha cabeça e brinca um pouco com alguns fios de cabelo, e a outra mantém-se em minhas costas.

-Eu não quero vê-la chorar. -Diz Esdras. Sua voz está... trêmula?
Olho pra ele, com meus olhos cobertos por lágrimas.
...
O príncipe... tinha os olhos marejados, e por suas bochechas desciam gotas de pranto.

Esdras está chorando?

Meu nome é Felícia (lembre-se).Onde histórias criam vida. Descubra agora