A cabana fazia muito silêncio entre o intervalo dos soluços suprimidos por mãos trêmulas, o medo já havia penetrado pela espinha de cada uma das mulheres e crianças ali. O ranger da madeira com a ventania era ouvido com a espera de que não fosse nada mais que apenas o vento. O sorriso de algumas horas atrás havia dado lugar a feições de terror e medo, mas Celiria ainda se mantinha firme, guardando seu filho nos braços.
- Que os antigos estejam te guardando.- suplicava a mulher mentalmente a quase todos os instantes.
O som dos gritos era audível entre o som da maresia e a cada grito o corpo de todos ali se encolhia em súplica, o frio que o medo causava congelava suas almas de forma cortante.
Aqueles homens já sabiam de seu fim, mas até o fim evitariam a chegada daquelas coisas à cabana. O fim era inevitável. Cada homem ali havia parado em um momento estático onde cada um olhava fixamente para aquelas coisas esguias, apertando seus punhos que seguravam cada projeto de arma. O momento era de silêncio e tensão, as coisas encaravam cada um e cada um as encaravam de volta. Aquele silêncio cheirava a morte certa, quando um clarão azul irrompeu da cidade em um som como se um raio houvesse caído naquele instante entre as construções dali próximas, com isso, uma das criaturas voltou sua atenção para trás e Kaisar com um bidente sem pensar duas vezes correu em direção a coisa, conseguindo cravar as pontas do bidente no peito da criatura, mas não foi o suficiente para abate-la. Kaisar foi jogado quando a criatura se voltou para frente gemendo de dor, Jarcon, aproveitando a abertura enquanto a criatura tentou puxar o bidente do peito, saltou e enfiou com toda sua força o último arpão disponível na face daquela coisa, que desmoronou por cima de Jarcon o deixando preso. Kaisar imediatamente correu para puxa-lo de lá com ajuda dos homens que restava, conseguiram tirar Jarcon de lá, mas ao olharem para perto das casas onde estavam ainda há pouco não conseguiram ver mais nenhum dos soldados em pé, apenas o que restava deles mergulhado na poça de seu próprio sangue lavado e nenhum corpo de criatura junto. Na planície antes do fim do morro que dava para a cabana, um dos homens restantes havia sido cortado ao meio, com o movimento do outro braço a coisa levou mais um homem e no fechar de mandíbula arrancou do braço até ombro de outro homem, a única reação dos dois restantes, Jarcon e kaisar, foi a de correr em direção ao fim da colina.
- Pelas escadas ficamos ainda mais vulneráveis, o tempo agora é crucial, vai ser mais arriscado mas não temos escolha, precisamos pular. A única saída é com as armas que ainda restam na cabana. - Jarcon dizia enquanto corria seguido de Kaisar que não o questionava sobre a ideia.
- Sim, pois que saltemos!- Kaisar falou enquanto seu último pé não tocava mais o solo. Jarcon saltava enquanto Kaisar o acompanhava em talvez uma última tentativa de sobreviverem e tentar ajudar os que ainda restavam a fugir. Uma última loucura para tentar prolongar suas vidas, mas Jarcon enquanto via Kaisar caindo também viu um braço comprido irrompendo de seu peito , Kaisar parou no ar enquanto aquele braço o segurava pelas entranhas, Jarcon viu aquela última cena de seu recente amigo antes de sentir também uma lâmina em forma de dedo cortando suas costas e uma parte pequena de seu pescoço.
O impacto sob o telhado criou um alarde em todos na cabana. Houveram gritos inevitáveis de espanto seguidos de gemidos que viam de cima do telhado, que logo se tornaram aumentaram com o som do impacto de alguma coisa caindo na areia compactada do lado de fora da cabana.
- Ce... Celiria...
Aquelas palavras assim que entraram no ouvido da mulher, a fizeram levantar com toda rapidez em direção à porta, Celiria começou a chorar enquanto arrastava o corpo de seu companheiro ensanguentado para dentro da cabana com a ajuda de outras mulheres. Ela tentava estancar aquele sangue que vazava de seu pescoço de uma forma desesperadora enquanto Jarcon tentava dizer algumas palavras.
- Eu... - O guerreiro engasgava com suas palavras encharcadas de sangue e dor. Um esforço monumental era feito a cada vez que tentava dizer algo .
O desespero de Celiria era muito grande, o sal de suas lágrimas não era o suficiente para estancar a ferida do pescoço de Jarcon e suas mãos trêmulas seguravam o corpo e o pescoço do homem em seu colo. Clistenes chorava ao lado dos dois sem saber como reagir a tudo aquilo. O rosto doce do garoto havia dado espaço a uma expressão tão dolorosa que cortaria a alma de qualquer um que o visse.
-Amo...
As mulheres choravam ao redor por suas vidas enquanto as crianças nem conseguiam se mexer por um estado de choque vendo todo aquele sangue descendo do homem.
- A vocês...
Celiria tentava impedir que Jarcon fizesse maiores esforços para falar, mas ela não conseguiria impedir que ele dissesse suas últimas e importante palavras.
- Dois... - Jarcon dizia aquelas palavras enquanto seus olhos mostravam sua vida se esvaindo de seu corpo ensanguentado que agora tingia todo o vestido de sua mulher. Celiria falou junto dele em suas últimas palavras enquanto segurava o seu rosto e beijava sua testa que também tanto o amava. O luto tomou conta de Celiria e Clistenes, que só conseguiam chorar enquanto abraçavam aquele corpo que esfriava aos poucos... O luto durou alguns instantes antes de ser interrompido por aquela última criatura quebrando a porta como se fosse um tecido de seda. O olhar de Celiria para a silhueta na porta não era de medo, mas de ódio, ira, uma raiva que crescia em seu olhar mais forte que seu corpo de carne e ossos frágeis e inúteis contra aquela coisa. O primeiro passo da coisa foi dado para dentro da cabana quando um clarão em azul desintegrou metade daquela coisa quebrando a porta e toda a lateral da cabana da esquerda para a direita. O sangue daquela criatura pintou a areia da praia e algumas faixas de madeira da cabana, o clarão havia cegado momentaneamente os que estavam lá dentro, mas a medida que o efeito foi passando, Celiria observara um homen quase do tamanho da porta que uma hora havia ali, de os olhos extremamente azuis, reluzindo poder, enquanto uma das mãos segurava um machado com runas azuis e com o punho de uma espada emergindo de cima dos seu ombro direito.
- Venham, agora! - disse o homem de voz estrondosa para aquelas pessoas desesperadas, que sem relutar, o seguiram para fora da cabana.
- Estão vendo aquele barco? Entrem nele e sigam pela costa, mas distante o suficiente para não serem tão percebidos, sigam nesta direção e chegarão á próxima cidade! Estarão seguros lá até o momento.
- Quem é você? - uma voz trêmula perguntou ao fundo.
- Façam isso! E e depois sigam até Corintho, estarão mais seguras lá! - disse o homem sem responder a voz que o questionava.
As mulheres e crianças saíram em direção ao barco. Celiria olhava para a cabana onde o corpo de Jarcon permanecera, dando um último adeus mais próximo.
- Foi você quem nos salvou, atrasando aquelas coisas, meu amor.
O olhar de Celiria foi voltando para frente, puxando a mão de Clistenes enquanto via o homem dos olhos reluzentes subir a colina em uma velocidade absurda. Logo chegaram ao barco, onde todos desabaram de cansaço e talvez um pouco de alivio por estarem já longe de toda aquela destruição. -Aquelas coisas... aquelas coisas são Emissários, só podem ser isso, eu lembro bem da descrição de minha avó quando contava as lendas. -Dizia uma mulher ao fundo enquanto buscava forças. - Os raios... tudo! tudo bate perfeitamente! -Não... essas coisas são da grande guerra, não seria possível, são somente lendas- Explanou outra mulher ao fundo. Um silencio se instaurou no barco que aos poucos ia pegando velocidade e partindo ao seu destino. Celiria que agora abraçava Clistenes encostada na lateral do barco, contemplava o céu como se soubesse que Jarcon lá a esperava. O garoto se confortava nos braços da mãe enquanto soluçava ainda sem conseguir digerir tudo aquilo. Um fardoo pesado demais para uma criança.- Estaremos, da carne às estrelas, sempre juntos... Meu companheiro.
E assim se seguiram aquelas pobres almas no barco, enquanto uma cidade em chamas ficava para trás. A noite escura tentava engolir as chamas. Tentava engolir as dores.
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A morte dos deuses
AdventureO mundo um dia esquecido pelo deuses antigos tem de volta seus olhos direcionados aos céus. A profecia se aproxima, mas seria capaz o mundo de resistir a tamanha catástrofe? Os novos e os antigos deuses despertam, a humanidade encontra-se no meio de...