VII- Labareda

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Iris batia com o pé no batente da porta de madeira, o som abafado jogava torrões de lama que estavam presos aos calçados, e antes que seu pé pudesse voltar a base ao chão, a porta abriu com uma velocidade
absurda. 
- Onde você estava?- disse kenzir em um susto de alívio indo na diração de sua filha para abraça-la com força.
-Eu tive um pequeno grande imprevisto na clareira... na verdade, três- disse íris enquanto seu pai a esmagava contra o peito e analisava cada centímetro seu em busca de ferimentos.
-Na clareira? Então você não foi tão longe...
- Não foi preciso eu ir tão longe para
encontrar confusão. Droga essas botas estão me matando - disse a garota se desvencilhando calmamente de seu pai e indo para dentro de casa.
Kenzir fechou a porta enquanto observou atenciosamente a vila  calma.
- E então? O que houve?- disse kenzir se sentando em uma cadeira revestida de couro de animal, bem velha, na frente de onde sua filha estava sentada tirando as botas com uma expressão de incômodo ao lado de uma lareira.
-Trolls- disse a garota sacudindo uma das botas enquanto encarava o fogo que ardia próximo dali.
Kenzir logo mudou sua expressão de atento para uma de mais surpresa, surpresa, não terror.
- Qual deles?- kenzir encarava a garota e a garota  encarava as chamas.
- Morrons, três deles, perseguiam o grupo de cervos que eu espreitava na clareira.
- Não me assustaria se fossem só um ou dois, mas três... Conheço a filha que tenho, até se fosse...
- A garota para de encarar o
fogo e olha para seu pai.
-Um branco? É, eu acho que daria conta sim. Seria até mais fácil por estar em cima da árvore.
-Kenzir sorriu levemente
enquanto tirava os olhos da garota e os voltando em diração as suas botas ainda com um vestígio de lama.
- E isso aí? Atraiu eles até a borda do rio?- disse ele voltando os olhos pros dela.
-Eu abati um enquanto ainda estava no alto, os outros dois me perseguiram até eu cair rolando dentro do rio, foi quando surgiu... Surgiu aquele vulto branco e levou os outros dois embora. Mais rápido que o senhor! Acho que o senhor está velho.- Disse a garota sorrindo.
-Você não perde um oportunidade não é?- falou ele acomodando ainda mais as costas na cadeira, encarando uma falha da massa que juntava os blocos que formavam a parede da casa.
- Você sabe o que era né? Por isso não
ficou surpreso. - Disse a garota já
confortada com a possível resposta.
- Sei o que poderia ter sido, mas aquela floresta ainda guarda tantos mistérios em seu fundo... -Kenzir continuava a encarar a
falha na parede.
-O presa branca. Achei que fosse só uma lenda.
A garota arrastou um banquinho
que estava próxima e colocou os pés os deixando mais perto do calor que irradiava.
Íris encarava o fogo como se procurasse cada memória do havia acabado de passar.
- Sim... O presa branca. Lendas são
histórias que vem sendo contadas há muito tempo e, quanto mais tempo se passa mais elas são reforçadas por boatos... Ou simplesmente esquecidas por falta deles... Mas são verdade em algum ponto lá atrás.
- Kenzir continuava olhando para aquele pedaço de parede como se ela guardasse histórias em si.
- Na lenda diz que ele defende os filhos da floresta contra os homens e o males que nela adentram. Eu sou uma caçadora... Então por quê? - a garota contraiu o olhar pras chamas e se voltou ao seu pai com um olhar questionador.
Kenzir piscou rapidamente parando de encarar a parede e
voltando o olhar à sua filha.
- Taí as coisas que as lendas não explicam. -Disse Kenzir se levantando da cadeira.
- Pelos deuses você está bem! Vá tomar um banho, irei terminar de arrumar a mesa para o jantar. Você precisa se alimentar e descansar. - Kenzir inclinou o corpo para beijar a cabeça da menina enquanto pousava uma das mãos na lateral do rosto de Íris antes de ir até a cozinha. A menina ficou encarando o fogo por mais alguns instantes em pensamentos nebulosos antes de se levantar para o banho. Kenzir cortava os legumes para uma salada enquanto vagava
em pensamentos.
- A nossa menina está ficando maior, meu amor... E ela breve precisará ficar ciente de todas as coisas. -Kenzir pensava suas palavras enquanto ouvia íris cantar uma canção antiga dos berserkirs, em uma língua antiga que até mesmo maior parte desses guerreiros não entendiam.
- Na noite escura afiei minha espada. Cortei meus inimigos ao fio da meada.
Como um lobo selvagem corri mais a frente.
Trazendo parte dos inimigos presa aos dentes.
E a lua chorou, chorou pelos seus. 
Mas de sangue quente ouvia-se o grito do corvo.
Levou. Levou.
Mais um filho aos deuses.
Levou. Levou.
E por vossos filhos chorou. - Íris cantava enquanto era acompanhada
silenciosamente por seu pai nas últimas partes da música.
- Essa música nem era para ser cantada alta assim, Asgarzir está quase eclodindo em guerra em algumas partes por causa dessa...Dessa briga de crenças... Os berserkirs  não deixarão as coisas simplesmente serem engolidas assim pelas cidades maiores... - pensou kenzir silenciosamente antes de ser arrancado dos pensamentos.
- Pai! Já estou mais que pronta e faminta para a janta. - falou íris enquanto secava os cabelos com um tecido feito de pelo de ovelha.
- Sim sim, vamos! - Kenzir piscou rapidamente acordando-se de seus devaneios mentais  e olhando para sua filha, que ajustava os talheres de madeira sob a mesa de aparência pesada e rústica. O jantar foi descontraído, com íris dando os detalhes sobre como havia bravamente se safado dos trolls na árvore e seu pai a olhava com um olhar sorridente, enquanto colocava a comida quente na boca. Íris contava a história e gesticulava seus movimentos pela mesa diante de seu
pai enquanto ele observava atentamente o movimento das mãos da garota e sua expressão de raiva enquanto falava. Já estava tarde da noite quando terminaram de arrumar e limpar o que restou do jantar. Sentaram mais uma vez à lareira, mas dessa vez, íris descansada e alimentada.
                                                                                            *
- O senhor acha que os chefes das cidades maiores estão certos?
- Sobre o fim dessa Era? Talvez em partes... Somos frutos de várias Eras que já se passaram, cada uma com seus ápices e declínios, não
desacredito que aconteça de novo. Mas não será como eles pregam, eles usam essa parte religiosa para conquistas políticas.
- "O despertar do Elo carmesim  irá trazer o fim de mais uma Era", era o que aquele pregador dos Vanirianos gritava há alguns dias no portão da vila. Ah se aqui tivesse um berserkir...
- Essas pessoas são loucas, os dois lados, tanto os Berserkirs quanto os Vanirianos.
Cegos com suas crenças sem enxergar as entrelinhas. - Kenzir encarava as chamas sem expressar nada no rosto. Íris encarava o pai com um pouco mais de concentração. Um trovão rasgou o silencio meditador dos dois, e o barulho das gotas batendo no teto feito de um amontoado de couro e folhagens começa fazer um som cada vez mais sincronizado.
- Quando se acredita demais em alguma coisa, as vezes você esquece de se questionar se pelo que você luta é certo, pessoas podem te manipular através disso. E quando muitas pessoas compartilham do mesmo sentimento, isso pode se tornar uma onda capaz de destruir muita coisa.
- Kenzir agora falava encarando a chama com um olhar distante, quase que vazio.
- Está dizendo que o oráculo mentiu para as pessoas? Mas por quê? - Íris perguntou enquanto se ajeitava no braço da cadeira de madeira.
- Se as pessoas acreditam em alguém
como um profeta, elas não questionam os meios do profeta de chegar a possível salvação, mesmo que essa salvação pareça ir por caminhos totalmente errados. O oráculo sabe da profecia, a profecia é de verdade, mas os complementos que ele cuspiu junto delas ao povo me parece uma interpretação equivocada. Mas ele é um oráculo, as pessoas não irão questionar a palavra do futuro, dos deuses. 
- Quer dizer então que ele se aproveitou disso para enganar as pessoas e ter poder sobre as outras cidades?
- Basicamente...
- Você falando isso me parece saber de bem mais coisas... - a garota encarava o pai enquanto enquanto seus cabelos iam encaracolando a menina em que secavam com o ar seco que energia da fogueira próxima.
- Não muito mais do que você já sabe sobre tudo isso e a profecia, do nosso sangue.
- Mas e os berserkirs? Que não deixam isso acontecer, por protegerem sua deusa matriarca? Também não podem estar cegos? - questionou a garota com uma expressão de dúvida esperando uma resposta.
-  Se comparados a nós, sim. Eles são guerreiros que veem no nome de Pandora uma última força quando encaram a face da morte nas guerras. Eles são tão antigos quanto o início desta Era. São homens e mulheres que nasceram com um fio de guerra e ira enlaçado em seus corações. Há homens que carregam mais de certos Elos... eles acham que dizer que Pandora trará o fim de tudo é uma afronta a tudo o que acreditam. Enquanto para uns é o fim, para eles é só o começo.  Por isso irão enfrentar os Vanirianos o quanto for preciso.
- Elos... - refletiu íris - a profecia está
chegando... E quando os raios vermelhos chegarem... A chave...
- os olhos de íris pesaram tanto que por mais que fosse uma
garota com grande força de vontade, não conseguiu segurar o peso que suas pálpebras tiveram naquele momento. Ela venceu a batalha contra os trolls, ,mas não contra aquela.
- Dormiu...- kenzir a encarou dando um sorriso silencioso e logo depois voltou o olhar para as chamas. Seu olhar foi tão longe que nem mesmo os maiores barcos conseguiriam chegar até lá, um olhar se tornou triste e melancólico tomou conta de seu rosto. A tempestade ao lado de fora parecia aumentar em consonância com os pensamentos do velho homem. O estalar da madeira na fogueira o acordou de cada devaneio. Levantou,
beijou a cabeça de íris antes de toma-la aos braços e colocá-la em sua cama.
- Durma, chaminha... eu sempre estarei com você, nós dois, sempre estaremos com você...-Kenzir dizia as palavras com a mão passando na cabeça de íris e sentado ao seu lado antes de se levantar e se recolher.

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