II- Branco, dourado e vermelho.

13 2 1
                                    

A decania era uma tradição dos povos mais ao norte, conta-se que quando duas pessoas sentiam o laço entre elas, realizavam uma cerimônia que firmassem esse laço perante a Mãe misericordiosa, aquela que é benevolente e que dá a vida a todos os homens junto de seus irmãos. 
- Você está maravilhosa! - dizia Jarcon enquanto olhava para sua mulher vestida em uma saia branca de um tecido muito fino e longo que se estendia até sobre um dos ombros, pois no outro subia um tecido dourado formando um decote onde, entre seus seios, um ponto vermelho feito com extrato de lírios da mesma cor, os lírios de sangue.
- Quando que eu não estive para você?- perguntava Celiria a Jarcon o analisando com quase os mesmos trajes que ela, se não fosse pela parte de baixo dele, que era composta por uma saia um pouco mais curta e a fita dourada era amarrada em seu braço direito.

A risada dos dois se confundia ao som de instrumentos que eram afinados e testados enquanto o céu se agitava em nuvens ainda mais cinzentas. Violas de três e quatro cordas iam sendo esticadas enquanto o couro dos tambores eram esticados em uma pequena fogueira próxima dali.
- Que os deuses antigos nos abençoem com esta chuva hoje!- dizia Jarcon, com o queixo apoiado na cabeça de sua mulher enquanto olhava para o mar, que se estendia diante dos dois.
Celiria teceu um breve sorriso enquanto apoiava seu rosto no peito de seu homem, um sorriso de tanto alívio e conforto que parecia estar deitada nos campos de lírios brancos do vale suspenso. O vale dos lírios suspenso era o paraíso das boas almas, aquele para onde os de bom coração poderiam ir caso assim decidissem os antigos deuses julgadores, uma vida eterna desprendida da podridão da carne e suas corrupções. Aquele era um dia realmente muito esperado pelos dois.
Clistenes corria para lá e para cá enquanto bicava as comidas expostas junto de algumas outras crianças da família. Apesar de a cerimônia ser na praia, era em um lugar mais reservado e alto, quase que no topo de uma colina em frente ao mar, onde se poderia ter o controle maior dos que entravam e saíam e, por lá também, ser o local com um pequeno altar de súplicas à Mãe. Já estava tudo preparado, Jarcon e Celiria cumprimentavam os convidados que os entregavam pequenos sacos com moedas e ervas para lhes dar sorte e prosperidade, Ferhur, era o nome deste ato.
O vento soprava do mar para a costa, a grama verde do pequeno morro ainda tinha relva em suas folhas que eram pisoteadas pouco a pouco pelos os pés dos convidados.
- Celiria!! - gritou um homem de barba ruiva e comprida, corpo robusto e cabelos bem escassos na parte de cima.
- Tio!- exclama a mulher com um tom absurdo de animação correndo em direção ao homem que chegava.
-Ah minha garotinha ,sempre tão bela!- dizia o homem enquanto a abraçava muito forte. Jarcon se aproximava devagar e sorrindo, para dar tempo do abraço demorado acabar.
- Meu velho amigo! Listainir de Tundra!- falava com grande entonação Jarcon enquanto abria os braços esperando o homem largar sua mulher e fazer o mesmo. Os dois se abraçaram com uma fraternidade muito grande e, o barbudo com as duas mãos no rosto ficava alternando entre olhar para um e para o outro.
- Fico muito feliz de os ver aqui. - dizia o homem com um princípio de olhos marejados. - minha Miracla estaria tão feliz de estar aqui hoje... - o olhar do homem ficou melancólico mas logo foi interrompido quando puxou um saco bem grande, maior que o dos outros convidados, onde haviam bastante moedas e ervas.
- Aqui está a lembrancinha de vocês! Ferhur!
- Ferhur! -Responderam Jarcon e Celiria.
A festa se seguia a muita comida danças e bebidas, quando um dos familiares notou um homem observando ao lado de fora da cerca, trajava simples roupas mas muito bem cuidadas, os cabelos longos eram penteados para trás e ele parecia buscar por alguém, um dos familiares de Celiria o questionou.
- Pois não?- enquanto o olhar do casal se voltou a cerca.
- Quem vem daí? - gritou o garoto surgindo entre seus pais e os empurrando para os lados.
Clistenes correu em direção a pequena cerca enfeitada de flores e abriu um mini portão para o homem adentrar enquanto os dois sorriam.
- Pai, mãe, este é Kaisar! Meu amigo do porto! - os dois o receberam com um sorriso.
- Então então é você de quem Clistenes falava ontem a noite.- dizia Celiria.
-Seja muito bem vindo! Amigo do nosso filho, também é nosso amigo. - Jarcon dizia enquanto abaixava levemente a cabeça em cumprimento, o homem fez o mesmo gesto e se inclinou para o lado de si alcançando uma bolsinha que estava pendurada em sua calça.
- Ferhur! - e entregou a Celiria.
-Ferhur! Disseram os dois.
A festa continuou até o cair da noite, onde o laço é finalmente concretizado, pois acredita-se que ao realizar a cerimônia a noite, os dois se eternizariam em estrelas do céu, onde todos os laços um dia existem até hoje em linhas de constelações.
A festa se seguiu até a hora do laço, de frente um ao outro eles recitavam os votos repassados por um sacerdote.
- Na noite escura eu segui o fio, tecido pela mãe, e em seu final eu encontrei a luz, a luz que aqui me guia. - e os dois repetiam.
- No dia eu encontrei teu seio, que na mãe encontrei a paz, que como nela encontrei a salvação. - e os dois repetiam.
- A vida por ela nos foi nos dado, em todas as estrelas, por ela, seremos eternizados. - e os dois repetiram em uníssono, quando enquanto o sacerdote cortava levemente a palma de suas mãos para retirar o sangue dos dois e o misturar, passando a junção sanguínea no ponto vermelho de lírios. E assim foi feito. Selados por sangue e um laço invisível mas que podia ser sentido por todos, o  beijo marcou o que já estava selado há muito tempo antes do nascimento de seus primogênito. 
A noite trazia uma brisa ainda mais gelada para aquele pequeno monte, o céu estava aberto em apenas uma pequena faixa por onde a lua jogava sua luz antes de se fechar por completo por entre aquelas nuvens ainda mais cinzentas que de costume. O céu estava avermelhado por conta da chuva que ameaçava chegar e quem olhasse para a infinidade do mar poderia ver algumas auroras se desenhando bem timidamente ao fundo, cortadas por relâmpagos distantes. Então, o sereno caiu. As pessoas gargalhavam de alegria, a chuva era sempre um bom sinal, o sereno fino leva as coisas ruins embora e renova a alma, era o que acreditavam os nortenhos que, apesar de viverem em maior parte do tempo no frio, quase nunca observavam ela cair de forma tão líquida assim. Os sorrisos se confundiam com as chamas dispostas aqui e ali, as bebidas que eram tomadas e as conversas jogadas fora, a noite se desenhava perfeita como aquelas auroras bem ao fundo. Clistenes corria ainda de um lado para o outro com aquelas crianças também incansáveis, seus pais abraçados conversavam com seus convidados falando sobre os mais diversos temas. A noite era branca, vermelha, dourada e ensolarada com a alegria de todos.

A morte dos deuses Onde histórias criam vida. Descubra agora