III- A chuva que entorna.

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Celiria carregava o garoto sonolento para um alojamento próximo dali, abaixo da colina, nas proximidades do mar, enquanto Jarcon permanecia com os convidados os fazendo hora. Kaisar já havia se tornado um amigo da família, e suas histórias encantavam a todos ao redor das luzes ondulantes das toxas que iluminavam o lugar. A chuva, que havia cessado por um instante começou a cair bem mais forte repentinamente, como se houvessem aberto uma nuvem, inteira sobre o lugar. 

Um raio estrondoso cortou o céu vermelho e olhar de todos se virou em direção ao clarão. Um som tão alto que alguns até mesmo, com reação instintiva se abaixaram na tentativa de se proteger. Em seguida, raios e mais raios desenhavam o céu, em um estrondoso soneto celestial de muita beleza e terror. Àquela altura já não adiantava mais tocar músicas pois não seriam mais ouvidas. 

Celiria voltava da cabana próxima  e abraçava Jarcon observando aquela movimentação do céu. A chuva entornava. As fogueiras já não mais conseguiam resistir a força da água que precipitava e por mais que raios e a chuva fossem um bom sinal, aquela tempestade parecia não ser completamente boa. Havia algo que fugia de sua normalidade e permanecer em campo aberto com todos aqueles raios caindo não era seguro.

- Eu nunca tinha visto esse tipo de coisa, nem... Em alto mar. - Kaisar falava observando o céu enquanto os pingos de água encharcam seu rosto. 

- Jarcon... - Celiria falava enquanto olhava seu homem observando intrigado com o céu raivoso.
Todas aquelas nuvens foram rasgadas de forma muito rápida por um raio, vermelho, que saía do mar em direção ao centro da cidade atingindo lá, seu ponto mais alto. Mas algo parecia muito estranho, fora sua coloração diferenciada, o raio, ao cair, se manteve estático por alguns segundos, o que deixou todos ainda mais confusos com tudo aquilo que se seguia.
A cidade ficava cada vez mais clara, com luzes que emergiam para o céu entre as casas. Eles em silêncio observavam tudo aquilo imóveis, como se aguardassem alguma resposta. Kaisa, ao lado do casal, concentrou sua audição e conseguiu ouvir entre o barulho das chuvas que impactavam contra todos ali, gritos, alardes.
- Tem algo de muito errado, acho... Que estamos sendo atacados. - aquela afirmação mudou a expressão de todos ali. Quando se pôde observar alguns soldados Corinthos correndo entre os corredores das casas muito a fundo. 
Listainir se aproximou rapidamente dos três com uma expressão fechada. - É, se existia alguma dúvida ainda, ela acabou de se esvair.  

- A cabana, abaixo da colina, tem ferramentas lá. - Afirmou Celiria.                                                              - Atenção, todos os homens, vamos descer pegar o que pudermos para defesa e guardar essa posição enquanto mulheres e crianças permaneçam escondidas. - Jarcon brandava enquanto observava os arredores da cidade atrás em maiores movimentos.

- Mas estamos mesmo sendo atacados?- perguntou um homem parente de Celiria.
O mesmo mal terminou de perguntar quando no canto de uma das ruas abaixo surgiu um ser de dois homens de altura, esguio, com dedos finos como lâminas, de cor preta como a noite e alguns pontos com linhas vermelhas que reluziam por seus braços, pernas e tórax, onde sua feição se assemelhava a de um crânio de águia, segurando metade de um corpo totalmente dilacerado a procura de mais vítimas. Todos olhavam abismados para aquela criatura horrenda que fedia a morte. 
- Agora... Tem que ser agora... - Listainir falou baixo para não serem detectados e logo em seguida todos foram saindo pelo fundo da colina de forma sorrateira, através de uma escada feita de pequenas pedras em direção a cabana em que Clistenes adormecia. As chamas apagadas ajudavam todos a se camuflarem na noite, andando com suas respirações presas como se o mínimo respirar pudesse trazer aquela coisa. Ao chegar na cabana entraram de supetão, homens pegavam foices, gadanhos, facões, arpões e até redes de pesca. Celiria chegava sentado-se junto de seu filho o abraçando, o mesmo acordava atordoado sem saber o que se passava.
- Os anos no exército de Corintho nos ajudarão agora meu velho amigo. - dizia Listainir a Jarcon.
- Pena que não nos ensinaram a usar ferramentas de pesca. - Jarcon sorria com um tom bem nervoso.
- Que Pandora esteja conosco. - disse  Kaisar.
Jarcon abraçou a Celiria e Clistenes de uma forma muito forte, por mais que ela estivesse relutante por sua ida, sabia que era necessário, ele cuidaria dos dois e ela de seu filho, os dois, juntos. Família. Um beijo dado na testa de Celiria por Jarcon simbolizou sua partida e a dos homens de volta a colina onde se escondiam nas pedras e cantos escuros onde quem estava vindo da cidade não os conseguiriam perceber.  A criatura rondava o porto em busca de novas vítimas quando o barulho de metais sendo balançando para lá e pra cá ficou audível, eram soldados de Corintho vindo em direção ao porto, cerca de dez deles foram surpreendidos por aquela coisa que espreitava por cima de um telhado. A criatura caiu por cima de um deles perfurando o espaço entre seu elmo e sua armadura peitoral, o sangue jorrou por cima de todos os companheiros enquanto ela terminava de rasgar o soldado. Todos avançaram para cima da coisa que se defendia com aquelas unhas afiadas que pareciam espadas, enquanto decapitava mais um dos homens.
- Temos que ir agora, precisamos ajudar os soldados, assim mantemos aquelas coisas distantes daqui. - Jarcon citou enquanto todos já seguravam suas ferramentas com mais força, ódio e medo. Jarcon deu o primeiro passo a frente, seguido de todos os outros homens e correram em direção a imagem esquelética daquela coisa, que havia tido uma perna e um dos braços já decepados pelos soldados onde já existiam apenas seis deles em pé. A criatura caída era perfurada de forma incessante pelos soldados e pelos homens que acabavam de chegar enquanto grunhia de forma aguda e horrível sentindo toda aquela dor causada pelas perfurações sem conseguir mais se defender. Sangue jorrava para todos os lados e os homens estavam todos tingidos de uma aquarela vermelha por conta do sangue e da chuva que parecia perder sua força.
- Conseguimos! Matamos essa coisa! - gritou um dos homens da família de Jarcon antes de ser decapitado por outra criatura exatamente igual. A guarda de todos se levantou,  um dos soldados foi jogado contra uma das paredes, enquanto outros dois eram cortados ao meio por aqueles dedos compridos, Jarcon que estava de frente às costas da coisa percebeu uma abertura e se jogou com o seu arpão enfiando nas costas da coisa, que se virou tão rápido com a dor que o jogou mais para longe, um dos soldados aproveitou a abertura e cortou o calcanhar da criatura sombria que gritou de dor e o atacou, o soldado levantou rapidamente o escudo que ao ser perfurado desviou a rota dos dedos laminados para o lado e rasgou seu ombro. O braço da criatura ficou estendido por tempo suficiente para que Listainir conseguisse corta-lo, mas ele não esperava  que a criatura fosse usar a sua boa em forma de bico para morder e esmagar sua cabeça, que tingiu todo o chão de onde acontecia a luta. Jarcon que estava ainda se levantando observou aquela cena com os olhos cheios de lágrimas, ódio e tristeza, mas sabia que não podia se abalar ali, ele possuía ainda muitos motivos pelos quais ele deveria continuar lutando. Aquela criatura rodava o braço restante pra lá e pra cá tentando acertar um e outro quando um dos soldados  arrancou o braço que ainda estava  preso no ombro do seu companheiro ferido, a criatura virou rapidamente em sua direção mas ele conseguiu rolar por baixo das pernas daquela coisa e quando ela virou mais uma vez em sua direção ele cravou a mão cortada pela parte de baixo da cabeça da coisa, perfurando seu crânio até em cima. Mais uma daquelas coisas havia morrido, mas nenhum deles sabia quantos ainda existiam, então recuaram mais para em direção da colina. Poucos homens ainda restavam quando se ouviu grunhidos vindo de uma das ruas de acesso, com toda certeza eram mais de uma daquelas coisas. 
- Droga! Apenas uma daquelas coisas por vez ainda levou muito de nós, duas de uma só vez? Estamos liquidados! - falou um dos familiares de Celiria que ainda restava.
- Vocês, civis! Recuem! O lugar mais aberto será mais vantajoso! Nós seguraremos a posição por hora! - dizia um dos soldados ainda de pé. O grupo de homens recuou até a base da colina onde aguardavam os soldados chegarem, quando as duas criaturas surgiram por cima do telhado, os soldados logo entraram em formação com seus escudos e, ao perceber o grupo de homens recuando, uma daquelas coisas saltou por cima dos soldados indo em direção ao já pequeno grupo de sobreviventes restantes. Era desesperadora a forma como corriam, iguais a lebres fugindo de raposas em um campo aberto. 

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