Parecia uma chama infernal que cortava uma noite escura, aqueles cabelos vermelhos saltavam de um lado para o outro, finos como teias de aranha. A dona dos fios carmesim sangue, tão forte e paciente quanto uma aranha a espreita de suas vítimas.
Iriskenzir, imóvel como uma pedra, aguardava suas vítimas pendurada nos galhos mais altos de uma árvore. Ela já havia seguido o rastro de mais um cervo há algumas horas e agora estava esperando os mesmos se recolherem ao vale. Ela não gostava muito de usar arcos e, por mais que ela conseguisse andar leve como uma pluma, ser rápida como uma ventania e ser ardilosa como uma raposa, todas essas qualidades não eram suficientes para chegar tão perto de suas caças e usar uma adaga. Com as mãos calejadas ela aguardava pacientemente agachada de cima de um galho tão grosso quanto o tronco de uma árvore comum, aquelas árvores milenares estavam lá antes dos homens e há quem diga que as próprias árvores sussurravam a noite no farfalhar de suas folhagens. Arvores altas com suas copas em formato de cogumelo, formando um teto verde por parte da floresta. O olhar vigilante de íris era a única coisa que se movimentava com frequência, os ouvidos faziam os olhos se serrarem a cada estalo diferente que a mata dava, sua roupa suja das caçadas anteriores disfarçava seu cheiro e o objetivo predatório da garota do cabelo de chamas.
Ser brincalhona como seu pai era normal, mas lá estava ela mais uma vez com a expressão extremamente séria observando as folhagens abaixo e ao longe de onde estava, procurando qualquer sinal de movimento que não fosse o balançar das folhas com o vento.
-Os ventos estão mudando, garota
flamejante...
Uma voz grave, secular e feminina sussurrou por detrás dos ouvidos de íris, que permaneceu inexpressiva.
- Eu os senti ontem, meu pai também, consigo sentir na minha espinha o que talvez esteja por vir, se as profecias forem de fato verdade...
Respondeu mentalmente a menina, mas mentalmente era o suficiente para a árvore conseguir ouvir.
- Temo que desta vez eu e minhas irmãs pereceremos...
Disse aquele estrondo . Íris permaneceu estática, mas pensativa no que poderia vir pelos dias a frente, uma árvore daquele tamanho não seria arrancada nem que houvessem dez anões a puxando, então o que poderia pôr em risco ela e as irmãs?
O olhar de íris se tornou pensativo por alguns instantes.
- O sangue de sua mãe corre forte em suas veias... Uma hora...
A conversa mental foi interrompido por um estalo na mata, a cabeça da garota logo se virou rapidamente em direção ao barulho, foi claramente a pata de um animal quebrando galho ainda um pouco úmido da chuva do dia anterior. O único estalo logo se propagou em muitos outros.
- O que? Sem prudência alguma? Tem algo de errado.
Os animais andando sem cautela intrigou íris e logo som foi ficando mais perto, mais rápido e onde era apenas uma fonte de barulho agora se tornam várias. Dezenas de cervos correndo na direção de onde estava íris, que esticou rapidamente a corda de seu arco ao máximo sem esforço algum, mas a garota não mirava nos cervos, ela fixava sua visão atrás deles, para o que poderia vir caçando eles antes dela. Estava ela observando talvez o último cervo passando pela árvore quando ele, já parecendo cansado por talvez estar doente e assim deixado para trás, foi jogado de uma vez por todas ao chão.
- Eles não eram para estarem aqui, então por quê? Por que tão ao Sul? - a garota se questionou enquanto observava os três Trolls marrons, que eram um pouco menores
que um homem alto de 1,80m, mas ainda assim maiores que ela. O fato de serem Trolls não a comoveu, apesar de serem criaturas grotescas, humanoides, cheias de pelos, nariz saltado cheio de verrugas e o rosto parecido com o de um grande roedor, o que deixava íris tensa mesmo era saber que eles estavam tão longe de seu hábitat comum. Aquelas
unhas pretas cheias de sujeira iam rasgando a pele do pobre cervo enquanto a luz ia se esvaindo aos poucos com a morte do sol entre a folhagem densa. Íris tinha um deles na mira, mas e os outros dois? Talvez nem vissem de onde veio a flecha, talvez a vissem antes dela conseguir acerta-los, ou ela poderia simplesmente os deixar passar, ela nunca havia caçado um
antes, a carne é dura e amarga, não servem para comer então, os mataria só para defesa caso precisasse, mas até ali não precisou. Os observou saborearem o cervo por alguns minutos, mas já estava escurecendo e até ela sabia que a floresta a noite não era segura nem pro mais experiente caçador, seu pai já deveria estar mais que preocupado aquela altura.
- Não tem como eles me verem aqui...
Pensou a garota, e estava certa, perfeitamente camuflada, tanto visualmente quanto pelo cheiro, ela sabia ser muito furtiva, mas um clique na mente de íris fez ela lembrar de um comentário de seu pai durante uma das instruções de caça.
- Castanhas de sangue, eles adoram. - Aquela frase de Kenzir ecoou na menina fazendo ela perceber onde estava escondida. As amendoeiras de sangue geralmente eram seculares, as menores que fossem vistas no mínimo tinhas décadas e mais décadas de existência, possuíam esse nome pela coloração interna das castanhas, de um vermelho vivo como sangue. As lendas dizem que as castanhas tem essa cor por se alimentar daqueles que se perdem nas florestas, talvez, seja apenas uma lenda mesmo, mas os sussurros na língua antiga talvez colaborem para isso teoria. Já que, essas castanheiras, seriam as únicas arvores as quais se poderia ouvir sussurrar, quanto mais em língua antiga. De fato, nem todos os conseguiam ouvir, e há quem dissesse que é só um fruto da imaginação de velhos e loucos.
Olhando ao seu redor rapidamente ela constatou que haviam várias castanhas na árvore em que estava.
-Eles vão sentir o cheiro, isso é certo.
Rapidamente ela tenta achar uma forma de descer sem ser percebida, uma vez que a árvore tinha o tronco tão largo que nem dez dela mesma conseguiriam abraçar a árvore.
- descer pelo lado que fica atrás do ponto de visão deles, é isso, mas eu tenho que ser cautelosa, eles podem me ouvir. - voltando seu olhar para o cervo os três trolls haviam
sumido e de supetão ela voltou seu olhar a base da árvore, dos três ela só conseguia ver um, mas ouvia mais de uma fincada de unhas enquanto subiam.
-Malditos, estão cada um subindo em uma posição diferente.
- Ela estava cercada e não teria como descer pela corda que usou para subir, ela seria facilmente pega. O som ficava cada vez mais próximo e ela cada vez mais sem saída. Era possível ouviro grunhido dos trolls famintos pelas castanhas enquanto subiam.- Droga, só tem uma forma de sair daqui. - Sem continuar pensando muito ela flexionou a corda do arco e esperou ver um dos trolls passando a altura de seu galho. -É agora.
Pensou a garota mirando contra um dos trolls e o acertando com tudo, uma flecha que entrou em um de seus olhos e saiu pelo outro lada da cabeça, ele nem sequer teve tempo de gritar, mas o baralho do arco e o estampido da ponta de ferro quebrando aquele crânio foram o suficiente para atrair a atenção dos outros dois. Ela puxou a corda que estava pendurada extremamente rápido segurando a extremidade e se jogando assim que os outros dois trolls a avistaram. Ao se jogar criou um movimento pendular que começou a envolver a árvore como o desenho de uma mola, mas ela sabia que isso encurtaria e muito a corda. Quando a corda finalmente acabou, à metade de seu caminho até o solo, íris sacou sua adaga e a cravou levemente de forma que ela conseguisse deslizar para baixo amortecendo a sua descida até o solo dando uma cambalhota assim que tocou o chão, para suavizar ainda mais o impacto. Sem nem olhar para trás saiu em disparada pelo caminho que havia feito mais cedo, o sol já havia sumido
e a escuridão abraçou a floresta, galhos e mais galhos passavam por íris como unhas de gatos enquanto ela ouvia os trolls bem em sua costa, dava quase pra sentir o vento
que suas patas faziam ao tentar agarrar a garota. Durante a perseguição a garota notou uma parte mais densa de vegetação com espinhos, que formavam uma barreira natural. Talvez aquela fosse uma chance de retardar o movimento dela que por ser menor sairia com mais agilidade daquela armadilha natural. Iriskenzir rapidamente protegeu o rosto com uma borda de seu casaco de caça e se jogou pela barreira floral, mas logo percebeu que iria precisar de mais força do que imaginou para atravessar. Já quase fora da barreira, aquelas dezenas de pontas tentavam a segurar, presas em suas vestes. Prestes a se livrar por completo aquela mão hostil e animalesca atravessa parte da barreira e consegue segurar à ponta mais próxima do casaco de Iris. A menina se rebate tentando se livrar o mais rápido possível, se fosse pega estaria liquidada, então sacou de sua adaga cortando fora aqueles dedos e tendões que tentavam puxa-la para morte. Aquele gritou horrendo ecoou pela floresta escura. Sem olhar para trás, Iris corria com a adaga empunhada quando um de seus pés encontrou o declive de um barranco, rolando várias vezes precipício abaixo até cair por fim em um rio, afundando e vindo à superfície com a mesma rapidez com que caiu. O pelo escuro dos trolls se disfarçou a beira do rio, mas ainda era possível observa-los se preparando para pular na água em busca de sua presa fugitiva. Agora ainda mais irados pelos danos que haviam recebido da menina. Folhas e mais folhas grudadas por espinhos em seus pelos castanhos e fétidos.-Mais que merda!! Eu não posso morrer aqui, não desse jeito idiota!- disse Iris olhando uma das sombras marrons saltando em direção a água, mas antes que ele pudesse tocar a água um vulto branco como um relâmpago na noite o interrompeu antes que tocasse a água, o grito de dor do troll não durou muito tempo pois era rasgado incessantemente por aquela outra coisa. O companheiro do troll sentiu por instinto que um perigo iminente o aguardava, até os trolls marrons sentem medo, e um medo colossal assombrou sua espinha naquele instante e o fez correr em direção a floresta na tentativa de proteger sua própria vida,
mas como a luz da lua na água a noite, aquela mancha alva entrou na floresta junto, e os gritos de agonia do terceiro e último troll calaram a floresta por completo. Um silencio se instaurou e a única coisa a qual se ouvia era o percurso do rio fluindo e o vento frio que tremia as arvores. A floresta pareceu respeitar tudo aquilo em seu silencio perturbador.
-Pelos... Deuses...
Agora sim o medo havia encontrado íris, que mergulhou e nadou por baixo da água até a margem oposta do rio.
- Não tenho tempo para me questionar o que foi aquilo. preciso sair o quanto antes daqui. Dizia a menina para si mesma enquanto vigiava os quatro cantos da floresta, aguardando com a adaga nas mãos a possível morte a espreita. -É claro! Se eu seguir o rio até em cima eu acabo voltando para a aldeia.Iris segurou mais firme ainda sua adaga enquanto ia seguindo pelo caminho
lamacento da quase borda do rio.
-Vindo por aqui eu tenho alguma chance de lutar contra aquela coisa sem que ela me pegue tão desprevenida quanto pegou os trolls...
Sua bota encharcada parecia ainda mais pesada pelo cansaço, a lua se abria entre as nuvens e iluminava as ondulações das aguas que circundavam pequenas pedras ao longo do rio. Vindo da floresta, vagalumes iam aparecendo e criando um vasto caminho ao longo das margens, como se quisessem iluminar o resto da caminhada da garota até sua volta para casa. Com o olhar atento e vigilante durante todo o caminho ela não observou mais aquele vulto estranho em forma de neve, e logo foi avistando as luzes das lamparinas que envolviam os limites dos
muros da vila. Em casa. Ela respirou.
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A morte dos deuses
AdventureO mundo um dia esquecido pelo deuses antigos tem de volta seus olhos direcionados aos céus. A profecia se aproxima, mas seria capaz o mundo de resistir a tamanha catástrofe? Os novos e os antigos deuses despertam, a humanidade encontra-se no meio de...