I-O pescador de histórias.

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Já se faziam dez anos desde o primeiro casamento dos pais de Clistenes. Era tradição nas famílias do norte que a cada intervalo de tempo igual a esse, uma Decania, se realizasse um novo festejo de casamento. Clistenes era filho único de um pai agricultor e mãe artesã, quando seus pais conseguiram realizar o primeiro festejo, ele já possuía cinco anos de idade e ainda assim foi uma festa bem simples, o trabalho dos dois era o suficiente para sobreviverem bem, mas nada de uma vida cheia de luxos. A ideia de fazer algo maior no festejo de Decania já era algo planejado para este ano, o casal havia guardado o suficiente para se fazer uma festa digna graças aos bons anos de colheitas que trouxeram bons frutos. Conseguiram juntar o suficiente para fazer uma festa com muitos amigos, bebidas e comidas na cidade do Porto, a qual sempre foi sonho dos dois que se realizasse ali a renovação de seus votos, também era sonho do pequeno Clistenes conhecer o grandioso mar do norte e suas águas gélidas, cheias de encantos e segredos que cantavam os cânticos antigos por toda Asgarzir.
Restava um dia até que a festa ocorresse e eles já estavam finalizando todos os preparativos para que a festa ocorresse. Já alojados em Begamor, a cidade do Porto. Enquanto seus pais terminavam de organizar os últimos detalhes do festejo com alguns amigos, Clistenes apreciava cada pedacinho daquela cidade, principalmente a parte costeira onde aquele mar o encantava de uma forma monumental, como se já conseguisse ouvir o canto de uma sereia em seus ouvidos de jovem pescador. 
- Não vá tão longe, por favor, Clistenes, ainda precisamos levar você  para tirar uma última medida do ajuste de suas vestes - falava sua mãe, Celiria, enquanto apontava para um arco de madeira enfeitado de flores brancas mostrando a direção para seu marido de onde ficariam os últimos pares de flores a serem postos.
- Deixe o garoto, Celiria, ele já é um homem de quinze anos, sabe se cuidar. Apenas tome cuidado com a água, Clistenes, lembre que você não sabe nadar- afirmava seu pai Jarcon, enquanto ajustava as flores no arco de madeira clara em cores de mel, enquanto Celiria informava a posição certa com os dedos.
- Sinto um chamado do mar, um guerreiro nao pode negar um pedido de súplica! Ah! e não irei me perder! - dizia o garoto dos cabelos pretos iguais os dos pais,  tão bonito quanto a mãe, de traços finos e a postura de peito estufado aventureira, do pai.
O céu de Begamor, a cidade do porto, se fazia cinza com nuvens fechadas que a tingiam quase o tempo todo, mas raramente caíam gotas de chuva. O garoto corria pelas tábuas enfileiradas que formavam o porto da cidade, um lugar cheio de vida, cheiro de peixe e tanto quanto peixes, histórias e pessoas, que compravam e descarregavam frutos do mar a quase que todo instante.  O som de vozes eram constantes. Compradores  barganhavam com vendedores e alguns soldados do Reino de Corintho andavam para lá e para cá com suas espadas e, os escudos, possuíam o símbolo de um carneiro de longos chifres estampado. As botas de couro do garoto quase ficaram encharcadas com a umidade que emanava daquele lugar, sem contar com o cheiro da água de peixe que escorria dos caixotes dispostos ao longo do píer. 

- Minha mãe vai me matar com esse cheiro de peixe preso em minhas botas - pensava por alto o garoto sentado em uma das bordas do cais onde haviam uma série de embarcações, já prevendo o que iria ouvir de sua mãe.
- Amasse um pouco de lírio azul e esfregue nas vestes, garoto, isso vai fazer o mal cheiro sumir e ficar com um bom aroma. -disse a voz rouca de um homem atrás do garoto, que vinha passando com um saco nas costas cheio de redes de pesca e indo em direção ao barco ancorado próximo ao menino.
- Lírios? -Questionou o garoto.
O homem de meia idade jogou o saco para dentro do barco próximo, apoiou um dos pés na lateral e inclinou o braço para dentro da embarcação, como se procurasse alguma coisa presa na parte de dentro.
- Estes! - jogou um maço de flores secas presas por um barbante na direção do garoto.
O jovem os segurou, sentindo o aroma que vinha do maço de forma intrigada e agradeceu ao velho homem.
- Quem vem daí?- disse o homem ao garoto, que o encarou sem saber o que responder. Logo em seguida o homem gargalha com a expressão do menino.
- "Quem vem daí" é como perguntamos o nome dos que vem a nossa frente nos barcos, quando não conseguimos identificar nossos amigos na névoa densa que as vezes nos aguarda em alto mar- explicou o homem ao garoto.
- Clistenes! Bom homem! E daí? Quem vem?- o garoto respondeu com um tom animado e um belo sorriso no rosto de quem se agradou da nova amizade.
- Kaisar! Ainda não havia visto você por aqui, se mudou recentemente? Ou tem algo a ver com o evento do tipo d colina?
- Sim, estão comemorando a primeira Decania de sua união. - o homem analisou a aparência física do garoto e percebeu que fazia sentido sua idade e o tempo de primeira decania.
- O senhor poderia aparecer amanhã, serás bem vindo!- o garoto se dirigiu ao homem que passou a encarar o mar bem longe enquanto via um pássaro pescando peixe ao longe na costa .
- Se o mar não me deixar navegar amanhã, eu irei, ou caso ele não me mate hoje. O mar vem se agitando muito esses dias, e assim como um ser que é vivo, ele também se irrita.
O menino tirou sua visão do homem encarou o mar, como se sentisse que cada barulho do vento forte que passava em suas orelhas não fosse apenas uma ventania, mas sim o mar conversando com ele naquele instante. As ondas quebravam, o vento assobiava e brisa fria acariciava a pele de Clistenes como se fosse o espírito de uma mulher encarnado na ventania. O cabelo comprido do garoto balançava como as  bandeiras hasteadas de alguns mastros que ali estavam.
- Sempre ouvi histórias de que os pescadores sabem que o mar os sussurra, isso é verdade? - aproveitou o menino para lançar a pergunta inquieta de uma criança curiosa, interrompendo a contemplação do homem sobre o mar.
- Algumas são apenas histórias de pescador, eu admito, mas outras são realmente fatos. O mar guarda muitas coisas que os homens ainda não conhecem, garoto, é um labirinto profundo onde a cada metro se esconde um segredo - disse o homem olhando para o garoto sem mover muito a cabeça. - Os sussurros é o tempo contando as histórias que os homens não podem esquecer.
- E que histórias não se pode esquecer?- perguntou o garoto, já intrigado.
- histórias antigas, de muitas Eras, como a de que, se você vir a estrela que se move pela água, você tem duas opções: voltar e viver ou a seguir e nunca mais voltar, mas não se sabe o que tem nesse "nunca mais voltar", se é a morte que lhe espera, ou a promessa de uma vida possivelmente melhor que esta. Eu  talvez nunca descubra o porquê. E talvez não tenha essa vontade de descobrir também. Tenho 40 anos como pescador, já nasci junto aos peixes e durante todo esse tempo eu posso confirmar a você de que já vi tal coisa duas vezes. Mas, como eu estou aqui contando a história para você, deve presumir o que escolhi - Kaisar se volta para o menino que abraçava os joelhos com um dos braços enquanto esfregava o lírio nas botas e o encarava, tudo ao mesmo tempo, com a feição presa nos olhos do velho pescador.                          - Você nunca teve vontade de descobrir o que teria ao final do caminho? - Questionou a criança que provavelmente seguiria a estrela marinha.                                                       - hahaha ela é linda, sim, algo mágico! Mas não sei se valeria a pena minha vida apenas para descobrir o que era aquela coisa de fato... a verdade é que... - O homem parou por alguns instantes nos próprios pensamentos antes de responder por fim. - ela me parecia ter vida própria, não era como as estrelas do céu, um brilho quase irresistível.
 - Como assim? algum monstro marinho? - questionou o garoto com tamanha ferocidade animadora.                                                                                  - Preciso ir, garoto! E você também! Nos veremos amanhã! - disse o homem se jogando para dentro do barco.- Mas justo agora? tudo bem, amanhã cobrarei respostas, esteja pronto! Até mais! - respondia Clistenes enquanto se levantava e acenava enquanto dava as costas para o homem e seguia sua direção.                                                                                         Kaisar havia desprendido o barco que começava a flutuar mar a dentro. Enquanto sentia o vento frio bater em seu rosto contemplando o mar, virou seus olhos ao céu cinzento e cheio de pássaros, voando de um lado para o outro, o som deles cantando se confundia com o barulho das ondas se quebrando e com o ranger de algumas peças de madeira do barco.  A água salgada espirrava por cima da embarcação jogando cotículas pela barba do velho pescador, que seguia, sozinho, seu caminho mar a dentro.   

O dia estava para terminar e os preparativos para a festa do dia seguinte já estavam quase todos prontos, restava apenas as medidas da roupa do garoto, que chegava correndo cansado pelo medo de estar atrasado.

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