Chuva

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Eu sempre observei a chuva sabe? Desde pequeno eu imaginava o que fazia o céu chorar. Mas nem sempre eu gostei dela. Eu pensava que a chuva era triste.

É por que fazia chuva no dia em que ele foi embora. Foi a última discussão que eu, minha irmã, e o bairro inteiro tivemos que ouvir de madrugada. Eles costumavam gritar muito. Mas lembro de pensar que o som da tempestade que caía lá fora abafaria o caos. Não vale a pena tentar recordar o motivo da discussão. Eles brigavam por qualquer coisa. Eu chorava por qualquer coisa. Mas acontece que naquela noite eu prometi que não ia chorar, eu tinha que ser forte. Só ia piorar tudo. O céu já estava fazendo isso por mim. E o choro forte do céu naquele dia fez a infiltração do nosso quarto piorar. Mamãe dizia que aquilo atacava minha bronquite. Mas ninguém pensa em bronquite quando se é criança e quer se esconder de todo aquele berreiro. 

Peguei minha irmã com cuidado. Ela já estava sonolenta e chorosa e principalmente com medo daquilo tudo. Nos refugiamos no quarto. Aquele mesmo da infiltração. E antes que ela chorasse eu tapei-lhe os ouvidos: nada daquilo era coisa que uma criança deveria ouvir. Eu sei que eu só era um ano e meio mais velho que ela, ainda iria fazer nove anos, mas eu sentia a necessidade de proteger, e lamento muito hoje em dia saber que não fiz isso direito. Gostaria de ser o irmão mais velho que ela precisava, o pai de verdade que ela nunca teve. 

Eu soube que ele tinha ido embora de vez quando eu vi meus livros no chão. Ele já costumava sair cedo e voltar tarde, sempre: trabalhava noite e dia e ganhava uma miséria.  Mas ele tinha levado a mala. A mala que nos finais de alguns anos usávamos para que minha mãe pudesse visitar a família mineira, e nós adorávamos. Ela sempre juntava um dinheiro pra isso; Pra isso e pra comprar livros: era professora, seu salário também não era muito, mas nos dava o que precisávamos, e ela sempre dizia que precisávamos de livros. Sabia a importância deles. Minha irmã não gostava muito da ideia de ler, mas pra mim ler e escrever sempre foi meu refúgio. Só que ela tinha que escolher entre comprar os livros ou comprar a estante pra guardar eles: então quando não estávamos viajando, os livros ficavam na mala.

Então era isso: ele tinha ido embora. Já não era mais madrugada e fazia o calor abafado do dia. Mas a chuva forte do dia anterior não havia cessado. E como se fosse adiantar algo, desci correndo as escadas e fui atrás dele pela rua, mesmo que ele já não estivesse lá há muito tempo. A água fria que caía do céu me fez pensar melhor: Não haveriam mais gritos, eu não teria mais que me esconder dos estrondos que pareciam trovões, haveria em casa silêncio, sem confusões, o silêncio que eu tanto prezo hoje em dia. Eu entendi que a chuva não chorava então de tristeza, que Ombela chorara sobre os mares na noite anterior, mas que hoje choraria sobre as matas, lagos e rios, lavando minha alma, levando os males embora: era um choro de alegria. Eu não deixei de ser forte, não deixei de ser homem, mas abri os braços e chorei de alegria com Ombela, sentindo a água fria na minha pele, sorri e chorei ao mesmo tempo. 

Hoje em dia eu agradeço a Ombela, agradeço à chuva, a vejo linda, sabendo que após cada tempestade existe um arco-íris. A chuva é o choro de Ombela, seja triste ou feliz. Chover faz bem pra alma. Todo ser chove. Chore, se quiser, se precisar.

Cry, if you want to Onde histórias criam vida. Descubra agora