luz

91 18 5
                                    

As luzes se ascendem.

Meus olhos doem, protejo rosto com a mão por quase um minuto. O que está havendo? O que mudou?

Tento abrir os olhos aos poucos e devagar consigo me acostumar com toda aquela cor branca. Estou dentro de um cubo de vidro, rapidamente olho na direção da parede que se tornou a mais familiar, aquela que divide a minha cela com a do Klint. Ele está lá, deitado de costas no chão, seus cabelos pretos bagunçados, os olhos com pupilas muito dilatadas olhando para nada, acho que sua cela permanece escura, mas não faz sentido, consigo ver tudo muito bem do lado de lá.

Bato no vidro e ele se levanta vindo tateando o ar até chegar em minha frente.

-- Bom dia. - Ele diz sorridente.

Eu posso ver ele.

Tão bonito, tão real.

Por favor , não seja um sonho, não seja um sonho.

Seus cabelos são negros e os olhos são verdes, lembro de ter perguntando uma vez e ele disse que nunca prestou atenção.

-- Eu posso ver você. - Falei quase incrédulo. - Você é tão Bonito.

-- Como assim você me vê?

-- As luzes--, respondi--, estão acesas. Você não vê.

Ele sorri. Agora de frente pra ele percebo que sou mais alto, o que me deixa um pouco confuso, ele sempre diz que é mais alto que eu.

-- E então o que achou? -Falou em tom zombeteiro. -Sou um pedaço de mal caminho, certo?

-- Você não vê? - Insisto percebendo que em nenhum momento ele olha pra mim.

Seu rosto fica um pouco mais sério.

-- Minhas luzes nunca se ascendem Kevin. - Diz ficando sério. - Eu sou cego.

Fiquei mais surpreso do que deveria, Klint me explicou que é cego desde que nasceu, nunca viu nada ou ninguém e que por isso foi tão fácil passar todo esse tempo aqui no escuro, acabou me confessando uma coisa que eu não esperava, minha voz foi o que manteve sua sanidade, disse que o mundo pra ele já perdeu forma, mas minha voz o mantém vivo e são. Sempre foi mais fácil pra ele lembrar, os sons que faz, as músicas que ele canta, este é o mundo dele, é como ele sempre viveu.

Nossos mundos se resumiam apenas as nossas vozes, agora eu tenho sua imagem, mas ele nunca terá a minha.

Alguma coisa estava acontecendo, por que as luzes se ascenderam depois de tanto tempo.

Passamos algum tempo conversando, ele me contou de como foi sua infância, de como sua vida foi complicada durante uma fase e de como a música o ajudou. Me disse que nunca me contou porque nunca foi importante, se nos dois estávamos no escuro, isso não faria nenhuma diferença.

As luzes se apagaram. Respirei profundamente. Voltamos pra escuridão. Perguntei como ele sabia sobre o flash da luz. Ele disse que a lâmpada na casa dos avós fazia a mesma coisa, era um problema elétrico e por depender da audição mais do que nós, foi fácil identificar o barulho da lâmpada e deduzir o que ia acontecer.

Algumas horas se passou, acabei dormindo. Quando acordei as luzes estavam acesas novamente. Observei minha cela. Não havia nada além da cadeira no centro, o colchonete e a escotilha. Do outro lado Klint dormia profundamente. Fiquei feliz por poder ve-lo, saber que ele existe. Que é real.

De repente água começa a brotar do chão de sua cela. Ele continua dormindo. A água começa a subir. Começo ame preocupar, oque está havendo, seria possível isso ocorrer com frequência e nunca percebemos? A água vai subindo e chega a altura do colchonete dele tirando -o de seu sono. Klint acorda num pulo. Ele escorrega e cai na agua que já alcança a altura de sua canela. Eu não faço ideia do que tá acontecendo. Continua subindo e subindo. Ele se vira na minha direção. Seus olhos azuis me olham com confusão, ele se levanta e vem até mim. Klint grita alguma coisa, mas eu não consigo ouvir. Grito de volta, mas ele não parece me escutar também. Leio seus lábios e ele me pergunta o que tá havendo e quem eu sou. Olho para ele com cuidado. Seus olhos azuis arregalados e... Azuis? Tenho certeza que seus olhos eram verdes até algumas horas atrás. Além do mais ele parece olhar diretamente pra mim. Ele está olhando diretamente pra mim.

Balanço a cabeça devo estar ficando louco. Será que ele estava brincando comigo com toda essa história de cego? A água chega a altura de sua cintura, percebo que não vai parar.

Penso em algo pra fazer. Fecho os olhos, tento acordar. Isso deve ser um sonho. Não acordo, talvez a conversa de mais cedo possa ter sido um sonho. Talvez tudo isso seja um maldito sonho. A água sobe mais é mais, apenas na cela dele. Pego a cadeira e bato contra o vidro, preciso tentar ajudar. É em vao. A água chega ao seu pescoço. Estamos apavorados. Não sei o fazer.

A água sobe mais, ele tenta se manter na superfície, seus pés já estão fora do chão. Bato contra o vidro que não será, nunca sede. Não posso ajudá-lo. Tento com a cadeira novamente. Ele só tem um pequeno espaço de ar entre a superfície da água e o teto. Tudo está acontecendo rápido demais. Continuo batendo, consigo fazer uma rachadura mínima no vidro. Continuo batendo, o metal da cadeira já está amaçado. A água chega ao teto. Ele não tem pra onde ir. Começa a procurar uma saída desesperado. Tento bater mais forte, meus braços doem, mas não paro, a rachadura cresce. Ele continua mergulhando tentando em vai achar alguma coisa. Já não tenho controle de mim, vou perde-lo. A única coisa que realmente me importa agora. Klint engole a agua e vejo sua agonia tentando respirar e quanto se debate. Continuo batendo e batendo e batendo, não posso perde-lo. Seu corpo para de se mover e começa aa afundar, os olhos arregalados, boca aberta. A rachadura cresce mais um pouco, agora deve ter dez centímetros. Talvez ainda não seja tarde.

As luzes se apagam.

VidroOnde histórias criam vida. Descubra agora