Capítulo 3

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Assim que ouvimos a porta fechar Vita soltou os galhos e se aproximou de mim, me ajudando a sentar na cama com cuidado, ele suspirou e todos os meus ferimentos se curaram. Eu me sentia muito fraca, como se precisasse de dias de sono, mas minhas pernas agora podiam se movimentar de novo.

— Você foi bem. Você nunca esteve machucada, eu só usei um feitiço de disfarce. Os ferimentos somem depois que é feita uma ressuscitação, mas ela não pode saber que eu te revivi. – Ele sorriu fraco.
— Eu não vou me casar com você. – Falei de certa forma um pouquinho desesperada por dentro. Ele riu. Como a expressão dele agora estava relaxada, sem a mãe por perto. – Quer dizer, eu preciso ir pra casa.
— É claro. – Ele se levantou da cama, onde antes estava sentado ao meu lado. – Nós vamos fugir, um dos meus irmãos provavelmente não virá, ele também não aprova nada do que minha mãe faz porque ele tem que lidar com todas as consequências do que ela faz em primeira mão. É pro reino dele que devemos ir.
— Como vamos fugir?
— Amanhã, quando todos estiverem nos esperando. O caminho vai estar mais livre do que agora, além disso ressuscitar não é fácil. Você precisa descansar. – Ele também parecia que precisava, as folhas de seu cabelo estavam secas e ele tinha olheiras profundas, desconfiei que ele passou a noite toda gastando sua energia para me trazer de volta a vida.
— E esse seu irmão pode me levar para casa, certo? – Ele deu um pequeno sorriso tentando me encorajar e assentiu. Era um alívio, minha vida era uma merda sim, mas não acho que seria melhor viver no mesmo mundo que aquela mulher.

Vita se sentou em uma "poltrona" de madeira com folhas que não parecia muito confortável, deu um gole num cantil de tamanho razoável e suspirou, fechando os olhos. Não ousei perguntar o conteúdo daquilo e tentei adormecer também.

Quando abri os olhos, logo os fechei novamente depois de ser quase cegada pela luz que entrava no quarto. Quando eles se adaptaram, vi Vita ainda adormecido na poltrona do meu lado, suas mãos estavam apertadas no cantil, mas sua expressão parecia a mais calma que eu já vi, de quem estava num sono profundo. Sorri ao ver que algumas folhas secas haviam ficado verdes novamente e vinhas se misturavam aos seus cabelos cacheados que pareciam mais sedosos.

— Ei. – Falei encostando em sua mão e ele acordou alarmado, olhando pros lados. Quando o pequeno susto passou, se levantou. Ele correu até o armário e pegou uma mochila.
— Eu trouxe isso do meu quarto ontem enquanto você dormia depois de morrer. – Ele falou casualmente. – Veste isso.

Ele me deu um vestido simples, parecido com aqueles vestidos simples de camponesa que víamos em filmes medievais ou sei lá, da Disney. Ele tirou lá de dentro outra roupa de um tecido parecido, mas masculinas, uma calça e camisa simples. Ele virou de costas pra mim, começando a se trocar e foi difícil não permanecer olhando, ele tirou a bata e vi que no meio das suas costas tinha uma espécie de cicatriz em espiral, como se fosse o meio de um tronco, ele também era magro. Daí ele começou a tirar a calça e virei em súbito de costas, sentindo as bochechas queimarem, tentei me concentrar em minhas roupas, troquei os jeans e a camiseta pelo vestido.
Devidamente vestidos, ele subiu na janela e estendeu a mão para mim, me ajudando a subir sem que eu tropeçasse na minha roupa da Disney. Uma plataforma subiu enquanto ele estendia a mão em sua direção e subimos nela, desci olhando o reino dessa vez na luz do dia e senti meus olhos lacrimejarem. Era um lugar lindo e muito verde, um bosque cheio de pessoas que aparentemente moravam dentro de árvores gigantes, meus ouvidos se encheram de vozes misturadas aos sons de pássaros. Vita colocou o capuz e pude ver que todas as pessoas atravessavam ao longe uma ponte de madeira até o palácio. Todas elas eram como Vita, os cabelos floridos e da pele nascem folhas e mais flores, tirei um momento para reparar em como eram um povo bonito.
Vi o gato verde do dia anterior vir da janela da torre do quarto de Vita e pousar em seu ombro, fazendo com que o garoto desse um sorriso e esfregasse seu rosto no pelo verde do gato.

— Estão indo para o casamento. – Ele falou enquanto olhava as pessoas, sua voz levemente embargada. Era óbvio a tristeza que ele sentia, segurei sua mão e dei um leve aperto.
— Eu também fugi de casa, sabe. – Ele me olhou com curiosidade. – Minha vida não era boa lá no meu... Planeta. Eu estava fugindo da minha mãe também.
Me calei não querendo mais falar sobre ela por agora, já sentindo um nó na garganta. Ele sorriu fraco, apertando minha mão de volta e depois soltando. Começou a andar rapidamente na direção oposta das pessoas e eu o segui.
— Pra onde vamos? – Falei enquanto andávamos pela cidade praticamente vazia. Era indescritível a arquitetura do lugar, é como se fosse uma cidade de fadas, mas de tamanho real. Era colorido pelas flores que cresciam nos troncos das árvores e em cada tronco tinha uma pequena porta redonda com uma plaquinha e provavelmente um nome escrito em uma língua que eu não conhecia, do morador.
— Nós vamos andar até chegarmos no Reino dos Espíritos. Os Reinos... Eles mudam de lugar todo dia. – Ele falou sem me olhar nos olhos.
— Que? Nós não sabemos o caminho, é isso?
— Nós andamos e vamos chegar em outro Reino, mas não tem como saber qual é até estar nele.
Eu parei de andar e o olhei, sentindo algo borbulhar dentro de mim.
— Tem algo que você não tá me contando e eu preciso saber em que merda você tá me metendo. – Ele também parou de andar e vi a raiva na minha voz refletida no olhar dele, que por um momento, pareceram escurecer, o verde se tornou cinza e me senti confusa, com certeza ele estava escondendo algo. Ele estava diferente de quando o conheci, eu conseguia sentir isso embora não soubesse dizer como.
— Nós não temos tempo pra isso. Se você quer ir pra casa tem que me seguir. – Ele andou até mim e estendeu a mão, abaixando o tom. – Por favor.
— Por que sua mãe não podia saber que você me ressuscitou? Que diferença faria? – Pareci pegar ele de surpresa, que aparentou assustado por um segundo, então novamente com raiva, abaixou a mão repentinamente e me encarou, seus olhos já verdes como antes.

Continuou andando claramente decidido a me ignorar, Vita sabia que eu não tinha opção a não ser segui-lo de qualquer jeito. Era muito difícil tudo aquilo, eu estava num mundo caótico e tinha de confiar cegamente no que aquele cara me dizia, eu sentia muita fome e tinha medo do que teria pra comer. Depois de alguns minutos andando pela mata densa, não haviam mais casas.

— Eu vou morrer de novo se não comer algo. – Falei baixo. Vita abriu a mochila na mesma hora e me estendeu o que parecia ser um pão normal e suspirei aliviada.

Passamos dois dias desse jeito, só eu falava algo quando estava com fome e o nosso pão já parecia estar acabando. Acampávamos durante a noite e eu sempre sentia como se algo estivesse nos observando, com certeza a mãe dele procurava por nós e eu não sabia o que poderia acontecer se ela encontrasse. O único que me acalmava era o pequeno Lo, que se esfregava em meus pés quando me via chateada. Eu ainda não tinha me acostumado com minha nova realidade e toda vez que eu dormia parecia que ia acordar no meu quarto, mas não, o rosto que eu via quando acordava era sempre do garoto florido e nunca mais o da minha mãe. Nesse tempo percebi que talvez eu nem mesmo sentisse tanta saudade assim de São Paulo ou da minha mãe problemática, eu estava num País das Maravilhas e não tinha porque querer rejeitar isso... Tinha uma mulher querendo me matar mas, detalhes, quer dizer, tinha magia ali.
Uma coisa que eu também tinha costume de pensar era o que minha psicóloga teria a dizer sobre minha situação, quer dizer, seria tudo isso uma fuga doida da minha mente do mundo real? Eu usei drogas e esqueci e agora tô em coma? Coma nem deve ser assim, falam que dá pra saber que tem gente com você ou quando falam com você. Mas quem iria falar comigo?
Toda noite, Vita parecia sussurrar algo antes de dormir, como uma oração e sempre bebia um gole do cantil que eu não sabia como ainda tinha algo dentro. Uma noite enquanto fazia isso, me senti incomodada, eu nunca tinha agradecido por ele ter me trazido de volta a vida e já estava cansada de não nos falarmos. Enquanto ele parecia hipnotizado pela fogueira e Lo dormia enrolado em seus pés, me sentei ao seu lado.

— Me desculpe, você salvou minha vida e nunca agradeci. – Ele olhou para mim brevemente e depois tornou a olhar pro fogo.
— Você tinha razão, tem muita coisa que eu não estou te contando. – Ele se virou para mim. – Eu sinto meus poderes enfraquecendo, isso significa que estamos chegando no próximo reino.
— E o que tem a ver você estar fraco? Eu realmente gostaria que você falasse tudo de uma vez.
— No meu reino eu morro a cada 100 anos e renasço pelo poder do cristal, eu sou o guardião dele e ele é o meu. Em outros reinos... Eu posso morrer de vez. – Ele provavelmente conseguiu notar o quanto minha expressão ficou assustada e continuou. – Eu ainda terei poderes se tiver fonte da Vida por perto, plantas, mas não vou conseguir fazer feitiços que não tenha a ver com elas.
Suspirei pesadamente e procurei na bolsa mais um pedaço do pão que estávamos racionando, para encontrar ela vazia.
— Nós vamos ter que nos virar mais um pouco agora. – Ele estendeu a mão para uma árvore próxima e eu observei enquanto um galho espesso veio até ele, se transformando em um arco, nas duas pontas dele Vita amarrou algo elástico parecido com cipó. – Isso é pra mim.

Então ele se levantou e estendeu a mão para o alto onde uma espessa camada de galhos e folhas da floresta tampavam parcialmente o céu, eles se afastaram, dando lugar a luz que vinha das Luas e das estrelas. Lo miou com a claridade nova, olhou ao redor e depois voltou a dormir.

— E isso aqui é pra você. – Eu estava vendo Vita animado de verdade pela primeira vez. – A boa notícia é que as Luas estão em todo lugar e você precisa aprender a usar o poder que elas te dão. A má... É que não sou só eu quem pode morrer.

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