Sylvia Plath

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Caso um dia alguém decida escrever uma biografia sobre mim, tenho certeza que estes não serão os acontecimentos narrados nela

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Caso um dia alguém decida escrever uma biografia sobre mim, tenho certeza que estes não serão os acontecimentos narrados nela. Provavelmente falarão de eventos mais grandiosos da minha carreira, ou da relação falida com minha mãe que, definitivamente, pode resultar em interpretações psicanalíticas tão ficcionais quanto os livros que V carrega para todo lado debaixo do braço. Para tal futuro biógrafo, um único capítulo sobre V talvez seja suficiente, o misterioso adônis com quem compartilhei a vida por um tempo, e depois voltariam a falar sobre as obras que ele inspirou e exposições marcantes, entrevistas, eventos. Penso que o protagonista de uma biografia deve ter uma vida célebre, recheada de aventuras, distante da rotina ordinária que preenchia 99% dos nossos dias, meus e de V.

Na maior parte, minha história com V é a rotina ordinária. Não existem tramas épicas, vilões e heróis, perseguições, violência ou um final digno de tragédias gregas. Na verdade, nem final tem.

É uma sequência de livros e chás, V deitado na cama, centenas de vinte minutos do amanhecer, muitos quadros, cores, passeios sem destino. É o cabelo molhado de V ao sair do banho, cada dia de uma tonalidade diferente, porque a água levava embora um tanto de tinta. São as nossas brigas, o choro, a angústia de nossa dependência, o piso de madeira do ateliê, pregos soltos, o cheiro de flores queimadas e as reconciliações. Trepavamos alguns dias, fazíamos amor em outros. V filosofava demais. Dava discursos sobre como nós não paramos para sentir, como a gente faz uma coisa depois outra e outra, já planejando o que fazer amanhã, que vivemos a vida pensando no que vem a seguir e ninguém gasta a droga dum minuto no presente. E primeiro ficava indignado, então melancólico, e me abraçava:

— Estou aqui — dizia V. — Esse momento é todo o meu mundo. É só o que existe.

Tinha esse hábito, por vezes irritante, por vezes adorável, de expressar seus pensamentos em voz alta e não era raro eu me perguntar se ele falava comigo ou consigo mesmo. E quando eu fazia perguntas ele se esquivava como borboleta, fugidio, e escapava entre meus dedos. Me dava silêncio quando eu queria respostas. Me dava verdades quando eu queria silêncio. E só respondia aquilo que eu não ousava perguntar. Maldito V.

E ainda que eu achasse seu discurso um bocado dramático na maior parte do tempo, V sabia mesmo sentir. E via, como eu, a superficialidade que a maior parte das pessoas nunca percebe ou que segue toda a vida satisfeita em ignorar. Para sentir é preciso parar; e parar não é permitido.

Existem duas coisas que o ser humano comum, que perambula por aí com sua paleta preto e branco, adora ostentar: tarefas concluídas e problemas. Os problemas, as reclamações constantes, as dificuldades, são argumentos que existem simplesmente para explicar o porquê de não terem, ainda, concluído a tarefa em mãos. São, então, a prova de que continuam perseguindo fins.

No Museu do Louvre os visitantes param, em média, por apenas três segundos diante de cada obra. Sim, caro leitor, pause um momento para absorver essa informação e talvez você compreenda como me sinto. Em momentos assim, quando me lembro desse maldito fato curioso e, sem querer, reflito sobre isso, sinto que minha vida toda perde um pouco o sentido.

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