Hermann Hesse

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Ele rolava de um lado para o outro na minha cama, sem conseguir disfarçar a agitação

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Ele rolava de um lado para o outro na minha cama, sem conseguir disfarçar a agitação. Ria, todo espreguiçado e contente.

— Quieto, V. – pedi, e ele levantou um olhar felino para mim antes de fazer um bico contrariado e se virar outra vez. Eu escondi meu sorriso atrás da tela em que estava trabalhando.

V se aquietou, deitado de bruços, mexendo as pernas nuas para frente e para trás. Um cotovelo apoiado no colchão, os olhos devorando o livro que havia acabado de encontrar, enterrado sob um monte de tralha na gaveta da mesa de cabeceira.

O livro, é claro, não estava ali por acaso.

Alguns dias antes disso eu passei num sebo e levei uns quatro livros velhos, desses clássicos que todo mundo já ouviu falar, e os larguei escondidos pelo ateliê como numa caça ao tesouro. Imaginei que V, enxerido como era, acabaria achando algum sem querer, sobre a estante mais alta, jogado dentro do armário, atrás das minhas tintas. Ele eventualmente encontrou todos, e a cada livro me oferecia outra vez aquela reação espontânea, de alegria genuína.

— Você já leu esse livro? – questionou com olhos brilhantes. Erguia o livro no ar como um troféu.

— Não. Nem sabia que isso existia. – respondi da forma mais casual que pude, e V ergueu as sobrancelhas espessas, sua boca formando um círculo. Uma expressão adorável. Precisei morder um sorriso abusado.

Seria sempre um enigma, para mim, como V podia transitar entre tantas facetas.

Era o teatro de si mesmo, o jovem adulto vivaz que transborda eloquência e sensualidade, mas também podia ser bem ingênuo e tolo como um menino. Um menino desses que crescem na rua descalços, com as roupas desbotadas e joelhos ralados. Desses que dão muita importância para trivialidades; coisa que a gente desaprende depois que cresce.

Ficava absolutamente eufórico com presentes. E não digo quadros ou joias, mas qualquer tipo de presente, como caixinhas de chá compradas no supermercado ou livros usados. Parecia mesmo uma criança na manhã de natal, os olhos castanhos arregalados e cintilantes, um sorriso incrédulo, de queixo caído. Esse tipo de reação automática me encantava. Era sincera. Talvez eu sentisse que estava mais próximo de desvendar aquele ser que, em geral, se demonstrava tão enigmático e planejado. Ao analisar a situação agora, acho que eu já tentava desvendá-lo desde que o conheci, sem nem me dar conta.

Presentear V se tornou irresistível.

Não era exagerado. Meu orgulho não me deixaria cobrir V de presentes caros, visto que o tempo que passávamos juntos já era pago (e nada barato). Contudo, depois daquele episódio fatídico do chá, eu criei o hábito de comprar uma coisa ou outra para V.

Boa parte das vezes não contava que eram para ele. Deixava oferendas por aí, à vista, para que V encontrasse por conta própria. Então eu diria "pode ficar" e poderia apreciar a expressão fascinada no rosto dele sem ferir meu orgulho.

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