6 - AVE MARIA

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— Boa tarde, senhores. — Saúda o sargento com as mãos na cintura e olhando para o céu. Dando a entender que logo logo será mais noite do que dia.

— Boa tarde, seu sargento. Tudo tranquilo por esses lados? — João, que está sentado no jegue sente um calafrio na espinha, ao escutar a pergunta do seu pai.

— Seu Biu, o senhor tem visto por essas bandas algum bando de arruaceiros? Ou quem sabe algum cangaceiro perdido.

— Não senhor. — Seu Biu responde calmamente, porém segurando com força a cinta amarrada na focinheira do animal.

— O senhor tem certeza?

O sargento desce do seu cavalo, atravessa pelo meio dos seus homens como se fosse um faca de sangrar porco, rápida e precisa, e aproxima-se do seu Biu e sorri para o menino sentado no cavalo. Alisa a testa do jegue para depois segurar a cabeça do animal e ficar olhando dentro dos olhos do bicho.

— Menino... Você sabe o porquê do seu jegue usar esses antolhos? — Os três homens da guarnição do Sargento ficam inquietos. Seu Biu percebe.

— É para não se distrair. Não olhar para os lados.

— Eita menino inteligente da porra! — Grita eufórico o militar. — E você sabe quando surgiu o antolho ou o "pau-dos-olhos?" — Seu Biu procura sua faca de ponta quebrada no bolso de frente da sua calça e lembra-se que colocou embaixo do arreio que seu filho está sentado.

— Não senhor.

— Faz muito tempo... No início do mundo. Quando a ganância pelas coisas dos outros começou a existir. Os primeiro de nós perceberam que poderiam ir longe com os cavalos, mas, para isso não poderia deixar que ficassem olhando para os lados. Então, começaram colocando folhas do lado dos olhos do bicho, mas, era ruim. Os animais ficavam agoniados quando o vento batia nas folhas e grudava nos olhos deles. Até que um inteligente fez um "pau-dos-olhos" que funcionasse... E como o nome mesmo diz, o primeiro foi feito do pau. Da madeira.

     O Sargento, sai da frente do cavalo e olhando para seu Biu pede para que o menino cante e toque.

     João olha para seu pai. Seu Biu jogando o queixo pra frente e olhando para seu filho único, balança a cabeça dizendo que faça o que o sargento pediu.

     O pai do menino abaixa sua cabeça, já sabendo onde errou. E errou feio. Errou mortalmente. Mas, uma coisa que ele não é cagão. Seu Biu não fica sentado atrás de uma mesa com o rabo na mão.

     João sopra a gaita e começa a cantar uma música que todo vaqueiro gosta, e que se essa canção é capaz de tirar água de pedra, quanto mais lágrima dos olhos secos de um sertanejo.

O menino canta "Ave Maria" e quando chega na parte do latim, fala as palavras esquisitas como se fosse um padre.

     Quando todos pensam que ele terminou de cantar o aboio... João começa novamente, agora, tocando na gaita a música "Ave Maria".

— POR QUE VOCÊS ESTÃO PARADOS? APLAUDAM O MENINO! — Grita o Sargento com os braços abertos e enfurecido com seus homens, por não terem aplaudido a reza mais linda que já tiveram escutado na vida.

     Mas, nem tudo que desce do céu consegue transformar um coração perverso.

     João grita e solta a gaita assustado ao ver seu pai levando um murro na cara, de supetão.

     Seu Biu cai batendo com a cabeça no chão. Fora pego totalmente de surpresa, pois ainda estava emocionado com a voz e a destreza do seu filho com a música.

— Peguem a gaita! — Ordena o Sargento olhando para o homem atordoado embaixo dos seus pés. Mexendo-se vagarosamente, sentindo sua cabeça latejar e o sangue quente molhando um lado do seu rosto, pergunta:

— O que fiz? — Dois Volantes derrubam o menino do jegue para pegar a gaita. João luta para não entregar, é em vão.

O Sargento fica em silêncio.

Seu Biu olhando para a face do seu algoz de baixo para cima, não sabe se ele está sorrindo ou sério... Percebe apenas, reluzindo na face escura da maldade, os brilhos dos olhos que espelham o entardecer.

— Você acoita marginal. — Seu Biu é jogado para trás quando leva um chute de botina na barriga. Depois, leva um chute na cara cuspindo sangue e gemendo de dor.

— Eu não estou escondendo nada... Eu não sei o porquê do senhor estar fazendo isso comigo. — Mal termina a frase e já leva outro chute na face.

— Mentiroso! Eu detesto mentiroso e quem acoita cangaceiro. Quem esconde bandido, bandido é!

O Sargento ajoelha-se de frente para seu Biu. O soldado chega por trás do militar entregando-lhe a gaita.

— O dinheiro fala. — Colocando a gaita diante do rosto de seu Biu, o Sargento continua: — E dinheiro de roubo.

— Eu sou trabalhador. Você me conhece!

— Eu lá conheço amigo de bandido. Você é um bosta. — Seu Biu leva uma cusparada na cara. — Quando eles tiveram na sua casa?

— Eles quem?

— Entendi... Quer pagar de macho pro filho. Tragam o menino aqui. — Um soldado mais corpulento e alto, sai levando o menino pelo braço até onde o Sargento se encontra. — Diga minha criança, para eu não ter que matar seu pai, quando os cangaçeiros tiveram na sua casa?

Sem olhar para seu Biu, João responde que não sabe do que o Sargento está falando. O militar sorri e baixa sua cabeça olhando para o pai do menino.

— Já vi que filho porco, porquinho é.

O Sargento tira seu revólver da cintura e acerta uma coronhada perto da nuca de seu Biu.

     O homem fica como se estivesse flutuando sem rumo pelo espaço sideral.

A facada é dada. Certeira.

     Entrou no meio da clavícula esquerda.

     João, torce a faca para os lados, como se estivesse mexendo feijão numa panela de barro.

O Sargento grita e golpeia o menino com a mão direita. A mão que está com a arma.

João cai longe.

     O militar ensandecido levanta-se. Com Ira pega o menino pela perna e o arrasta de volta para perto do seu pai, que continua lerdo com a coronhada que recebeu na cabeça.

O Sargento com a mão fechada e mais pesada por causa do revólver, começa a espancar o menino na face.

— Você vai cantar ainda melhor quando te cegar filho de uma cachorra.

     A primeira coronhada esmaga o globo ocular de João.

— Assum Preto só canta melhor quando nós furamos os olhos dele. — João continua sendo castigado com porradas na cara.

Seu Biu se joga sobre o Sargento, o derrubando. Com rapidez o pai de João cata do chão a faca de ponta quebrada e leva uma saraivada de bala antes de apunhalar o militar na garganta.

O pai cai morto por cima do filho. O Sargento irado, levanta-se e faz mais disparos nas costas do homem.

— Filho do cão! — Grita o Sargento tomado pela loucura. — Esse menino é filho do cão! — O volante chuta o corpo do pai, caído por cima da criança.

— Sargento! — Grita um dos seus homens. — Os dois estão mortos. Pare! O senhor precisa de socorro! O seu sangue não para de jorrar, parece mais uma bica.

— Se não morri quando fui cercado pelo Curisco e seus homens, não será agora que serei morto por um fedelho desgraçado.

Os soldados ajudam o Sargento a subir no seu cavalo e partem de volta para a cidade de Luzeiros, em busca de socorro médico.

ALMA LUPINA - "Venha, entre e sirva-se" - Lançado em 24/03/2021Onde histórias criam vida. Descubra agora