— E o menino? — Pergunta Capitão.
— Meu filho... Ele caminha entre os dois mundos. Eu não sei se foi a reza ou se foi ele, mas, a criança vai viver.
— Obrigado minha mãe. — Capitão, abaixa-se e beija a mão da senhora negra que usa um pano branco na sua cabeça para não aparecer sua calvice.
— O mundo é estranho meu filho.
— A senhorinha magra, porém cheia de saúde, fala olhando para seu filho de santo. — Há coisas que a gente nunca entenderá, só do outro lado quando a vida se der por fim, aí sim... — "Mãe Preta" para de falar olhando para a parede cinza opaca da gruta. — Talvez... Quem sabe?
Capitão observa "Mãe Preta" seguindo seu caminho. O caminhar dela, embora forte, não é mais ágil. A idade pesa-lhe os ombros a fazendo andar encurvada.Ela sabe que há duas certezas na vida, e de nenhuma delas o ser-humano pode escapar.
A primeira é a morte. Já nascemos sabendo que temos um prazo.
A segunda, é a velhice.
"Mãe Preta" chega na sua casa feita de barro. A porta de madeira range quando ela abre, e não é por falta de óleo. É por causa da poeira seca mesmo. Empurrando e fazendo força com o braço direto, consegue fechá-la.
A idosa risca uma pedra na outra, criando uma fagulha que dá vida as chamas do querosene na lamparina pendurada na parede de barro. Depois, devolve as pedras para o móvel de madeira suspenso por dois tijolos em cada um dos quatro lados.
"Mãe Preta" caminha até o altar de Nossa Senhora da Conceição, pega uma vela branca e acende na lamparina.
— Não é nada bom, minha mãe Oxum. O que vi não foi nada bom. Preciso da tua proteção.
— Posso entrar?
"Mãe Preta" salta para frente com o susto e vira-se vendo o menino parado na entrada da sua casa. O pequeno caolho espera a resposta com paciência.
Ela sabe que fechara a porta... Ela sabe que pode estar velha, mas esclerosada? Nunca!
— Mizifio, o você quer aqui? — O pano branco usado para enfaixar a cabeça do menino, mina sangue do lugar onde havia um olho esquerdo.
— Se sou seu filho, então deixe-me entrar?
— Não confio em você.
— E nem deveria. Faz bem. Estás certa. Mas prometo que não estou aqui para te fazer mal.
"Mãe Preta" olha para o menino parado em pé na entrada da sua porta.
— E como vou saber que não está mentindo?
— Pergunte para quem você acendeu a vela.
— Você é o tinhoso.
— Só para quem não presta. Jogue seus búzios ou leia suas cartas, eu espero. — "Mãe Preta" olha para a criança. O cabelo dele é cacheado e preto..., mas, curto.
— Você parece um velho no corpo de uma criança... Pode entrar.
O menino obedece.
Pede licença e entra na casa de "Mãe Preta" olhando para todos os lados.
A casa é humilde, mas a energia da natureza que circula no ambiente é intensa.
A criança novamente pede licença, puxa a cadeira de madeira e senta.
— Relaxe minha senhora... Venho de muito longe. Caminhei pelo mundo até chegar aqui.
— Eu sei. O que você quer de mim?
— Primeiramente sua discrição.
— Que peste é isso? — "Mãe Preta" pergunta abusada tirando um sorriso do olhar da criança, que encontra-se sentada parecendo um dono de engenho.
— Peço a penas que vigie sua língua, bruxa.
— O que você quer por essas bandas?
— Vingança. — "Mãe Preta" sente um arrepio subindo suas costas.
A voz do menino é de criança, mas o olhar dele... Sim, o vermelho sangue do olhar da criança acende no meio da escuridão onde ela se sentou.
— Eu estou de passagem. Preciso me recuperar.
— Qual o seu nome, Mizifio? — O menino diz seu nome.
— Acho que "Assum Preto" pegaria melhor para você. — Fala a macumbeira rindo. Galhofando do menino, que responde com o silêncio.
Um silêncio brutal.
Aterrador.
— E estou com fome.
— O que você come?
— Carne fresca.
— Eu não como carne.
— Mas tem bicho. — "Mãe Preta" pensa em negar o pedido, mas prefere fazer a outra opção... Não por medo, mas por sentir-se valorizada.
A criança poderia ter matado ela e os bichos sem perguntar nada, porém preferiu pedir.
— Se você sabe que tenho bichos, então sabe onde eles estão.
O menino levanta-se da cadeira e ajeita sua roupa branca e limpa.
— "Mãe Preta" muito obrigado. Nunca esquecerei do seu gesto.
— Só mais uma coisa. — Parando na porta, e virando o rosto até topar com seu ombro, o menino aguarda a pergunta. — Como conseguiram te ferir tanto? Tirei muita bala do seu corpo, pequenino.
O menino suspira.
A feiticeira não esperava que sua pergunta fosse lhe causar um efeito tão doído. Virando-se e olhando para "Mãe Preta", responde.
— O que você vê foi o acaso... — Uma lágrima escorre pela face da criança. — Agora a dor que corrói por dentro... — Pausa o pensamento para depois continuar: — Essa nunca vai cicatrizar.
Dizendo isso, o menino mistura-se no breu.
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ALMA LUPINA - "Venha, entre e sirva-se" - Lançado em 24/03/2021
HororSete mulheres. Uma loba. Uma Alma. 1934. 24 de Dezembro... Natal. Um pai viúvo e preso na cadeira de rodas recebe uma visita inesperada. Uma criança, no pior dia da sua vida, conhece uma Loba azul que se tornará sua melhor amiga. Morte...