— Ele não saía de cima de mim e continuava cantando a Ave Maria. Eu apanhei tanto que perdi os sentidos e fiquei cego. — Assum Preto continua falando encostado na imensa prancha de madeira. — Um homem me achou no meio do nada. Ensanguentado. Quase morto. Sem dificuldades ele me colocou no braço e me carregou.
O caolho desce do balcão e vai até a jovem donzela e com o facão rasga-lhe a carne macia, na altura da cintura.
— SOCORRO! — Grita a adolescente com toda força que lhe resta.
— Pare com essa palhaçada... Não terminei minha história. E você sabe o porquê de'u estar aqui. — O cangaceiro esmurra a face da moça com toda sua força. Depois, a esmurra com a mão esquerda não altura das costelas e para. Olhando para a moça se afasta e continua sua história: — Ele cuidou das minhas feridas a bala. Quando já estava quase sarado ele fez uma pergunta, da qual a recusei de imediato. Porém, passados mais dois dias, eu reconsiderei a minha primeira resposta e disse que queria a minha vingança. Mas, antes de ter minha vingança, teria que crescer e torna-me um homem.
— V-você matou... Toda... minha família. — A jovem fala com dificuldade.
— "V-você matou toda minha família." — Assum Preto repete a frase com zombaria. — Há quanto tempo você matou toda família?
— Quem matou minha família foi você! SEU CÃO!
Assum Preto mexe nos seus bolsos e diz:
— Achei! — Fala sorrindo e mostrando a gaita para a adolescente. — O tal que me ajudou, disse que antes da minha vingança eu teria que diferenciar o bem do mal. E sabe por quê? Por que o mal as vezes se veste do bem. Tem cheiro de coisa boa. Ajuda ali, depois ajuda acolá... Mas, ainda é o mal. Vou perguntar mais uma vez... Há quanto tempo vocês estavam aqui? — Ele pega a gaita e mostra para a jovem. — O homem que salvou minha vida, me ensinou a tocar gaita. — Assum Preto fala de forma despretensiosa... Quase sentimental, ao lembrar-se de como eram difíceis as aulas de gaita.
A dificuldade não consistia em tocar uma música, mas elaborar durante a canção um intervalo entre duas notas com três tons que pareciam tornar o som dissonante aos ouvidos mais privilegiados ou sensíveis.
— Minha cara, você já ouviu falar sobre o Trítono? — A jovem pendurada igual um pêndulo, olha espantada para Assum Preto.
— Você esteve com ele?
O trítono tocado na gaita azul deixa a adolescente enfurecida, que tenta de todas as formas escapar das cordas que prendem suas mãos.
* Exemplos de Trítono: Black Sabbath com a música "Black Sabbath" e "Lazy" do Deep Purple.
Capitão acorda logo cedo e vai verificar se o menino sobreviveu. Para sua surpresa, ao chegar no local que ele dormiu, Mãe Preta estava terminado de trocar o menino e já havia guardado a roupa da criança dentro do cesto de roupa feito de ripa de cipó.
— O que conheceu?
— A criança transpirou a noite toda. Troquei as roupas molhadas por secas.
— A senhora não pregou os olhos?
— Alguém tinha que ficar de tocaia no menino.
— Ele parece bem melhor.
— Sim! E bem mais corado.
— Ele comeu alguma coisa?
Mãe Preta olha para o menino que dorme e responde para o Capitão:
— Quase nada... Uma sopinha de carne. — Mãe Preta, discretamente, sem o Capitão perceber, abraça com sua mão direita o patuá, que é um pingente preso a um cordão de couro em volta do pescoço, usado para dar proteção.
— Acorda ele.
— Mas pra quê, mizifio?
— Tenho que falar com ele. Escutar se a voz dele está forte ou fraca.
— A noite dele não foi fácil. Deixe o pobre menino descansar.
Mesmo contrariado, Capitão cede ao pedido de Mãe Preta, senta no chão e fica olhando o menino ressonar.
O líder do bando fica pensativo, como a melhora da criança.
— Pode ser a melhora da morte. — Fala o Capitão baixinho e chora. Ele queria de todo coração que esse menino se salvasse. Seria como uma purgação de pecado.
Quando Zé da Vela arribou, fugiu, mesmo os militares estando em número bem menor e com mais mortos, o cangaceiro jurou vingança. Haja vista, naquele dia, o capitão Joventino perdeu um irmão, o compadre de seu casamento e alguns amigos soldados... Dentre os soldados mortos, dois deles haviam completados dezoito anos a pouco tempo. Um a vinte dias e o outro a sete meses atrás.
Quando Joventino perdeu a patente, ficou desprotegido. Sem guarnição. Zé da Vela aproveitou o infortúnio e marchou para a casa do ex-militar.
Naquele dia, somente escapou Joventino e Madalena com vida, porque pensaram que eles estavam mortos. Os três filhos do casal foram mortos e pendurados enforcados.
O Capitão assusta-se com o menino que está olhando para ele, sentado na cama. O cangaceiro percebe que ainda brota sangue das feridas, mas, a criança está inegavelmente melhor.
— Qual o seu nome?
— Silva.
— Oxente menino, e desde quando Silva é nome?
— Meu pai só me chamava assim.
— Você se lembra do que aconteceu?
— Gente iguais a vocês mataram e roubaram meu pai. Eu nem sei porquê estou vivo.
— O pestinha sabe ser petulante. Alto lá! Respeito é bom e eu gosto! Gente igual a mim, não! Eu mato bandido que usa farda ou não.
— O que está acontecendo aqui? — Pergunta Madalena assustada.
— Esse bostinha quer pagar de gente grande. Por que você está com esse sorriso na cara?
— Vocês formam um belo casal.
O Capitão para de falar. Madalena segura no braço do marido. Marido e mulher se olham porque o menino não falou em tom de chacota, mas, elogiando os dois.
— A gente quando viu, eles já estavam perto e chegaram atirando. Não foi roubo... O Cemitério matou toda minha família... Só não me matou graça a vocês. Obrigado.
Capitão, avança até o menino e o abraça. Madalena escuta o pranto do marido, que não consegue conter o choro. O menino retribui o abraço, mas, dos olhos azuis claros não cai uma lágrima.
— Eu vou achá-lo. — Promete o Capitão.
— Quem fez a promessa ao homem na hora da sua morte fui eu. Sou eu que irei matar o Cemitério.
Capitão, por alguma razão desconhecida, sente os pêlos dos seus braços ficarem em pé. A voz do menino lhe causa estranheza.
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ALMA LUPINA - "Venha, entre e sirva-se" - Lançado em 24/03/2021
HorrorSete mulheres. Uma loba. Uma Alma. 1934. 24 de Dezembro... Natal. Um pai viúvo e preso na cadeira de rodas recebe uma visita inesperada. Uma criança, no pior dia da sua vida, conhece uma Loba azul que se tornará sua melhor amiga. Morte...