15 - FIM

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— Como estava falando, o Trítono foi criado no período medieval, dizem que foi acidentalmente.. Mas, nada é por acaso. — Assum Preto toca a gaita novamente, fazendo a jovem ficar com mais sangue em seus olhos. — Foi então que o homem que me salvou, me disse que se eu quisesse despertar a ira de um demônio... O que deveria fazer?

     A adolescente olha para o cangaceiro estarrecida.

— Só uma pausa... Preciso comentar isso! Essa cara que você acabou de fazer foi ótima. — Assum Preto abre um largo sorriso. Rindo cinicamente. Literalmente.

— O que você quer?

— Vixe. Ave Maria, mulher! Tocar a gaita, lógico! Até parece que estou naqueles programas de tv, onde o pastor pergunta para a mulher possuída "da onde tu vem, e para onde tu vai?".

— Como nos acharam?

— Calma... — Ao terminar de pedir paciência à jovem, um cachorro Yorkshire entra no local latindo para o cangaceiro que o responde, cantando uma música do Oludum:
— "Avisa lá que vou chegar mais tarde, é! Vou me juntar com o Olodum que é da alegria. Avisa lá! Avisa lá! Avisa lá ô ô! Avisa que vou!". Vou te contar um segredo... — Assum Preto passa a gaita para a mão esquerda, e colocando a outra mão sobre a boca, como quem vai contar um segredo íntimo, afirma — Eu adoro o Olodum!

— Por que o Vlad, não veio me matar pessoalmente? — Ao fazer a pergunta, ela chora mais sangue.

— Por que você é um lixo para ele? Vejo que estamos progredindo! — Assum Preto se aproxima da jovem sem medo. —Tudo se resume nas escolhas que tomamos na nossa vida. E Drake escolheu não olhar na sua cara, nos momentos derradeiros. Ele está lá fora... Mas, me pediu para fazer com você o que ele sempre teve vontade. E logicamente você sabe o que é.

Olhando para o sangue que cai com o choro da mulher, o homem suspira.

— Fúrias. Fúrias e fúrias. Alecto, você teve sua escolha. Por que vocês se distanciaram tanto do caminho?

A Fúria assumindo sua real forma responde olhando nos olhos de Assum Preto:

— A humanidade nos esqueceu. Antes nas alcovas dos deuses éramos temidas. Somos as filhas mortais de Hades e Perséfone, mas— Alecto olha para o chão de barro. —, os homens pararam de fazer orações com seus corações cheios de cólera, inveja e ira para nossos pais. Ao invés disso eles passaram a invejar por si próprios. Morriam e matavam sem a influência da nossa fúria, começaram a andar sozinhos e descobriram a deusa do momento: A Modernidade. Com o avanço do mundo, todo nosso mundo ruiu. Acabou. Mas, precisávamos nos alimentar do rancor, da inveja, do ciúme e da vingança. E foi o que fizemos desde então, tornado-nos humana passamos a ser veneradas e novamente nossos poderes voltaram.

— E saem mantando sem respeitar o ciclo natural.

A Fúria gargalha alto.

— Olha quem fala.

— Eu não mato pessoas, Alecto. Eu tiro a vida de seres iguais a você. Mudam de forma para matar minha raça.

— Você é um tolo, garoto. O que Vlad disse mais? Ele lhe disse quantas pessoas inocente matou? Aposto que não.

— Ele disse. Eu quase não acreditei que estava diante de um ser tão antigo e poderoso. Ele cuidou da minha saúde. As balas do sargento atravessaram meus pulmões, rim e coxa. Eu via nos olhos deles a ira pelo que fizeram comigo. Ele poderia ter bebido do meu sangue, quebrado meu pescoço ou simplesmente ter me deixado entre as caatingas para morrer. Ao invés disse me deu água e disse que eu estava morrendo. E como se fosse hoje, falei "vingança".

— Você quer que eu chore?

— Drake... Me lembro como se fosse hoje. Olhando para mim começou a me explicar... Se eu quisesse minha vingança teria que escolher beber do sangue dele, apenas escolheria qual dos pulsos.

— Ele mudou tanto assim? — Galhofa a Fúria.

— O pulso da mão direita me deixaria com uma fome que só seria saciada com sangue humano. O outro, poderia escolher apenas uma vez que animal desejaria ser, mas, poderia voltar a forma humana a cada sete luas cheias.

     As presas de Assum Preto crescem majestosamente.

— E por último, Drake disse que eu poderia tão somente morrer. Ele ficaria ali comigo até que meu espírito deixa-se meu corpo, e me daria um enterro cristão. Alecto, por que você se infiltrou no castelo do senhor Vlad, fez uma carta imitando a letra dele e entregou para sua esposa? Por que você foi dizer para ela que um amor igual ao deles seria eterno? E ainda afirmar que os dois se encontrariam do outro lado da vida, sugerindo-a o suicídio?

— Garoto, eu fiz porque quis. Eu sou a Alecto.

— No meu sertão, temos um ditado popular...

— Quem com ferro fere, com ferro será ferido?

— Se você não quer um boi cheirando seu cangote, não passe na frente dele usando vermelho.

— Só um besta dum matuto nordestino, para acreditar que um boi ver cores! — A Fúria gargalha. — A propósito — Alecto continua —, junto com o toque da sua gaita mande seu passarinho cantar. Eu vou sofrer mais assim, do que ficar escutando piada. — Alecto olha na direção da gaiola e o passarinho não se encontra mais lá.

     De dentro da escuridão, como faróis que acendem preguiçosamente, dois olhos vermelhos cintilam calmamente enfurecidos.

     Drake, sai da escuridão.

— Todo esse tempo você era o pássaro? Bateria palmas para você, se não estivesse amarrada.

— Assum Preto pode ir. Você não vai querer ver o que vai acontecer aqui. — Drake, olha para o rapaz e continua: — Acredite meu amigo. — Assum Preto nunca havia visto seu padrinho tão ferozmente calmo.

     E pela primeira vez, Assum Preto teve medo de Drake.

— Alecto, você já chupou mandacaru para matar sua sede? Ou bebeu lama para saciar o flagelo que a sequidão causa no céu da boca? Você nunca viu ninguém morrer de sede... No derradeiro desespero o cérebro manda um sinal alucinado para a boca morder o corpo em busca do próprio sangue.

     Drake rasga a Fúria com sua mão direita do ombro até o quadril. Com o corpo tremendo de dor, Alecto escuta-o concluir o pensamento:

— Se você nunca soube o que é isso, ou pelo menos viu alguém morrer de sede... Como ousa cuspir seu veneno xenofóbico?

— Vlad... Eu sou imortal.

     Drake mostra para a Fúria um alicate "Bico de Papagaio".

— Quando você nasceu, eu já andava pelo mundo.

     Com uma ferocidade demoníaca, Drake agarra-se ao corpo da Fúria, como uma serpente que esmaga sua presa, fazendo-a abrir a boca.

     Com extrema violência, a Fúria vê sua língua ser arrancada da sua boca, pelo beijo dado por Drake, e assisti-o comê-la enquanto olha de volta sadicamente em seus olhos.

—Se você não quer um touro violento vindo na sua direção, não tremule a capa. Essa é a primeira lição que um toureiro recebe. Você deveria saber que nunca perdoaria o que você fez com Elizabeth.

     Alecto sente sua boca sendo invadida pelo alicate "Bico de Papagaio", e Drake arranca-lhe o dente da frente. A dor é maior que a força de gritar.

— Sabe aquele dito popular falado pelo meu amigo, Assum Preto?

     Alecto chora sangue horrorizada ao saber que Drake sabe do seu único segredo... A sua imortalidade está condicionada aos seus dentes ficarem na sua boca.

— Cada palavra... dita naquela expressão popular será um dente seu que arrancarei. Eu espero que você tenha mais de sessenta dentes, porque não tenho pressa alguma.

FIM

ALMA LUPINA - "Venha, entre e sirva-se" - Lançado em 24/03/2021Onde histórias criam vida. Descubra agora