2 - AZUL

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— Alma minha filha! Tenha cuidado! Essa menina uma hora dessas vai estabacar-se no chão com esse cachorro. — Fala Dr. Esmeraldo.

— Papai... Lupina é uma loba... E deixa Alma brincar. Correr. — Ao escutar o nome "Loba" ele olha para filha, fazendo gestos com as mãos, como se este fato fosse deixá-lo mais calmo. — Pelo menos ela não está se lembrando da mamãe.

Dr. Esmeraldo abaixa a cabeça e suspira ao lembrar-se da esposa. Sim. É justo o que sua filha diz. Pelo menos isso não passa pela cabeça de Alma..., não agora. Dois anos passados para quem ama, foi ontem o ano de 1924.

— Verdade. Antonia foi cedo demais. Aquela maldita doença corroeu todo o corpo e a vida dela. — É a vez de Carmem abaixar a cabeça olhando para o chão. As lembranças da sua amada mãe chegam a todo vapor. Carmem agonia-se quando explode na sua cabeça a imagem de dona Antonia carcomida pela lepra.

Dona Antonia era uma mulher branca, cabelos preto e lisos que chegavam na cintura, rosto emoldurado e nariz afilado. Uma máquina de trabalhar com um metro e sessenta de altura. Pura vitalidade. Até porque, não era brincadeira ter parido sete filhas, criar quase todas elas, cuidar do marido e da casa. Porém, a lepra chegou arrasando com dona Antonia... Parecia um bando de gafanhotos devorando uma plantação de trigo.

     A moléstia foi cruel, cruel demais... Cruel além da conta com a pobre mulher. Parecia até "coisa feita". Morreu em dois anos a dois anos atrás.

Por isso a imagem do corpo da sua mãe cheio de amputações, podre e cadavérico explodiu na jovem cabeça de Carmem.

— Minha filha, você poderia me levar para dentro da casa? — Pede o pai com a voz cansada e chorosa.

— Mas, pai... O dia está lindo.

— Eu sei, mas preciso descansar. Ruminar a mente.

Carmem olha para Alma que brinca com Lupina. Uma jogando-se por cima da outra - A caçula das sete mulheres tem sete anos. - Com amor, a filha mais velha ajuda a empurrar seu pai na cadeira de rodas feitas de madeira morro à cima.

Dr. Esmeraldo levou um tiro pelas costas que quase tirou-lhe a vida, todavia, o matou da cintura para baixo. Naquele fatídico dia, ele e dona Antônia deram entrada no mesmo hospital, um para tentar viver e o outro para dar à vida à sétima filha do casal.

Alma vê sua irmã e pai irem embora. A menina está abraçada com Lupina. As duas estão sentadas numa parte do chão que ainda não fora comida pela seca.

— Papai ficou triste de repente. — Lupina como se entendesse o que fora dito, faz um leve grunhido. Reafirmando o pensamento da menina. — Ele deve ter se lembrado de mamãe. — Uma lágrima cai perdida de Alma.
Lupina, lambe o rosto da criança e se aconchega deitando em seu colo.

— Lupina, se não fosse você meus dias seriam mais tristes. — A loba sobe sua orelha direita e junta-se mais ao corpo da menina.

Alma lembra-se daquela noite.

O caixão de sua mãe estava fechado e fincado no meio da sala, sendo velado por umas trinta pessoas. Ela, com cinco anos na época, está abraçada ao corpo de Elisangela sua irmã número quatro. Era considerada a filha do meio, mesmo elas sendo um número ímpar.

Alma, observa seu pai com as mãos pregadas ao caixão, cabeça pendurada e urrando com uma dor que rasgava a menina por dentro. O lamento dele era gritando: "Por que você não me escolheu? Por que Deus, por quê?"

A menina de cinco anos larga a saia da irmã e corre para fora da casa, empurrando as visitas que se amontoavam na sala para prestar as últimas homenagem à dona Antonia.

Ela corre para dentro da caatinga. O breu é palpável, mas ela pouco se importa. Nunca havia nuvens no céu mesmo. Os riscos dos espinhos não doíam quando um perdido arranhava seu corpo.

A menina tropeça e cai. E abraçando o chão seco, árido e duro, deitada despenca a chorar. Flashbacks dos melhores momentos da sua vida vão se alternando entre imagens coloridas e pretas e brancas.

Como a imagem da criança vestida de vermelho, passando pelos adultos em preto e branco no filme A Lista de Schindler... Assim mesmo acontece dentro da cabecinha de Alma.

Sua mãe, aparece em sua memória pintada nas cores mais lindas e brilhantes dizendo que a levaria até Recife para conhecer a chuva... Enquanto todos à sua volta, pintados de cinza, falavam sobre como era a chuva para Alma no café da manhã em família.

— Mãe, eu amo você. — As mãozinhas entram na terra seca e amassam o solo com toda suas forças, tendo seu rostinho beijando o chão.

Ainda com a face no barro, sente um pingo de água bater em sua cabeça. Depois mais outro, novamente mais um e ao vira-se, ainda deitada, olhando para o céu, vê os pingos de chuva caindo sobre seu corpo pequenino, iguais a vários pingentes de gotas prateados.

Alma fecha seus olhos.

Sente a chuva molhar sua face.

Desde que nascera, nunca tinha visto chover... Agora, ela sabia como era a chuva e qual seu sabor.

Alma abre a boca e deixa a água mergulhar dentro dela. Porém, escuta as vozes das suas irmãs lhe chamando. Deitada toda molhada ela diz:

— Mãe, obrigado pela chuva. Agora sei como é. Te amo. — Alma entendeu ali que a chuva fora um ato de amor da sua mãe e não o acaso.

Ao levantar-se e sentar sobre seus joelhos ela assustasse com o que vê.

Um animal de pêlo azul, sentado e de prontidão olhando para ela. Mais tarde ela saberia que não era um, mas uma. Isso mesmo... Uma loba de pêlos azuis.

Sem saber o porquê, Alma diz baixinho "Lupina". A loba sai do lugar que estava e vai na direção de Alma... Focinho e face ficam a dedos de distância. Bem pertinho. Os olhos castanhos claros de Alma conquistam os olhos pretos de Lupina.

Alma abraça Lupina pelo pescoço da loba.

Carmem bate no ombro de Suzana, a segunda irmã mais velha, quando vê Alma saindo da caatinga encharcada e com uma Loba azul ao seu lado, andando juntas como duas amigas, embaixo de um temporal torrencial onde os raios iluminam a escuridão selvagem daquela noite.

ALMA LUPINA - "Venha, entre e sirva-se" - Lançado em 24/03/2021Onde histórias criam vida. Descubra agora