Café quente. Tudo o que eu precisava naquela manhã fria. O dia de ontem foi péssimo. Não parei de chorar em instante algum. Acordei chorando e fui dormir chorando - se colocassem uma câmera em meu quarto, acho que daria para me ver dormindo e chorando ao mesmo tempo também, já que eu tive um pesadelo horrível, que virara realidade três dias atrás.
Minha vó (meus pais tinham morrido fazia quase cinco anos por causa de um cara bêbado que atropelou-os na calçada) me olhava com preocupação - ela sabia o quanto eu estava magoada e machucada por dentro. A morte dele foi algo que eu até imaginaria que pudesse acontecer um dia (e era aquelas coisas que você sabe que podem acontecer, porém reza para que não aconteçam), entretanto não sabia que aconteceria justo agora.
Agora.
Agora eu estava chorando. Agora Harry não estava mais me chamando no WhatsApp ou outro meio de conversa por celular, me desejando "bom dia" - ele me amava. Eu o respondia com outro "bom dia" com vários sorrisinhos - eu amava-o também. Eu era a única pessoa que sabia...
Agora.
Agora eu tinha que parar de chorar, ver o que eu iria fazer. Minha vida continua, mesmo depois de meu melhor amigo ter morrido tragicamente. Espancamento não é algo legal - muito menos com uma pessoa tão querida e amada como ele. Imagine ser morto por pauladas - dor ser a última sensação que você sente antes da morte...
E além disso, um dos caras que bateu no Harry ainda não foi identificado, e está solto por aí!
Não consigo imaginar aqueles cachos sendo maltratados, aqueles olhos com o sentimento de terror e medo, aquele coração batendo forte e o mais rápido possível, sabendo que logo, logo, iria parar. Coisas tão brutas não deveriam acontecer com pessoas tão frágeis.
Harry. Você não merecia isso. Você era simplesmente um anjo para mim. Sempre me alegrando, assim como eu tentava fazer com você. Nunca pude agradecer tudo que você fez por mim. Nunca pude agradecer a confiança que você teve em mim.
Mas talvez
Agora
eu possa.
Não fui à escola hoje. O tempo estava nublado e chuvoso, de novo. Eu não tinha entusiasmo para sair de casa, então resolvi ficar e procurar algo para fazer para me distrair, como limpar meu quarto, dar uma olhada em alguns livros que eu comprara e não tocava a meses, ver o tempo, ir à varanda olhar a rua, o movimento, a vida alheia (coisa que eu e Harry adorávamos fazer)... Quem sabe até ver um filme - triste, é claro, porque eu simplesmente "não estava" para ver filmes de terror, ação ou qualquer outra coisa que não fosse um filme dramático.
Minha vó me deixou ficar em casa. Uma coisa que eu amo muito nela é que ela, mesmo tendo mais idade e tendo alguns problemas, ainda é compreensiva. Agradeço a mim mesma até hoje por meu instinto ter me mandado falar ao juiz para morar com minha avó. Meu avô morrera fazia um ano, e eu ainda escutava a vovó chorando um pouquinho algumas noites - e pensar que agora seria ela que ouviria uns pequenos choros e soluços de madrugada...
Eu me senti doente o dia todo. Febril. Eu sei que era mais psicológico, mas sinceramente, era como se eu estivesse com uma depressão que me parecia que nunca iria acabar. Era aquela dor que se sente no peito, no coração. Aquela dor agonizante, que te faz querer gritar até que todo ser vivo no mundo te ouça, até sua cabeça explodir, até você ficar sem ar; desaparecer, fazer com que tudo voltasse ao que era antes, com que coisas que aconteceram... Não tivessem acontecido.
Aquela dor que pode fazer uma pessoa querer se matar.
Harry. Eu não sei o que eu faço. Te perder... Ah, meu Deus! Como isso foi acontecer? Por queisso foi acontecer? Por que você teve que morrer? - Perguntas e mais perguntas atordoavam-me, me fazendo se chocar com a realidade que eu estava disposta a não aceitar.
Harry, menino de cachos castanhos claros, cintilantes; olhos cor de mel; pele clara... Menino de sentimentos fortes e também delicados... Com pensamentos tão infantis e brincalhões, tão divertidos mas também tão sensíveis, atentos e compreensíveis...
Você sempre foi tão amigável com as pessoas ao seu redor - por que alguém iria querer sua morte? Querer sua dor? Seu sofrimento?
Certas coisas são injustas. Meus pais. Meu avô. Você. Pessoas puras, boas... Que morreram sem razão alguma. Eu realmente não entendo isso. Tinha dias que eu me perguntava o "por quê" da morte de meus pais... Passei a me perguntar o "por quê" da morte de meus pais e meu avô... E agora, não queria te adicionar à essa lista de "por quês" , mas me pergunto o "por quê" de sua morte também.
Deus, o Senhor quer me matar também? Quer me ver sofrer?
Foi aí que eu percebi que eu não poderia ser tão "egoísta" assim. Não era só eu que estava sofrendo. Todos os amigos de Harry, seus parentes, seu pai... Sua mãe! Estavam todos de luto também.
Aquela moça chorando sem parar sentada perto do seu túmulo... Estava claramente sofrendo horrores... Ela também sabia que você era uma pessoa muito querida e não merecia aquilo. Ela só não sabia um dos "por quês" que eu sei. Praticamente ninguém sabia desse "por quê" , ninguém nunca ouviu você falando isso, "admitindo" ... Vendo seus lábios pronunciando as palavras... Esse "por quê" , era o "por quê" desse espancamento.
Boatos diziam que você tinha dado cantadas em garotas e os caras não gostaram; boatos diziam que você tinha roubado algo de um dos caras daquele grupo e todos se revoltaram; boatos diziam que você xingou um dos caras e queria briga...
Cada coisa que inventam...
Harry, você não merecia isso!
As pessoas deveriam saber quem você era, o "por quê" de isso ter acontecido... Pena que moramos em uma cidade pequena e ninguém leva assuntos assim tão profundamente, tão a sério, então os policiais deixaram que os boatos resolvessem... Claro que eles devem estar procurando pelo suspeito, mas não digo que estejam fazendo isso com toda força que podem. Essa mídia também não ajudou.
Acho que realmente as pessoas deveriam saber quem você era.
Eu vou contar, Harry.
Eu preciso contar.
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Dear Harry
RomanceCamila demora para superar a verdadeira e forte amizade que tinha com Harry - os dois conversavam pelo celular diariamente, além de serem melhores amigos na escola -, e com sua morte ela fica com uma espécie de trauma, ainda escrevendo (em um "diári...