Não sei muito bem por onde começar. Nunca tive muito jeito para contar histórias, fossem elas quais fossem. Em boa verdade, nunca tive muito jeito para nada na minha vida, com a exceção de montar e desmontar computadores. Daí, não ter sido uma grande surpresa, quando enverguei por um curso de Engenharia Informática, licenciando-me com grande honra e valor aos vinte e quatro anos. Com o "canudo" na mão e um mar de possibilidades no horizonte, lancei-me ferozmente no mercado de trabalho, pensando vir a tornar-me um milionário das tecnologias. Visto na altura, estar muito na moda. Escusado será dizer, isso não aconteceu. Acabei por arranjar emprego na loja de informática ao fundo da minha rua, destinado a ouvir os clamores das velhinhas que não conseguiam pôr o comando da televisão a funcionar, muito por culpa das grandes empresas, que ano após ano, aumentavam a complexidade dos aparelhos. Segundo elas.
Um emprego que estava destinado a ser apenas temporário, provou ter uma astúcia e resiliência brutal, permanecendo inalterado na minha vida até aos dias de hoje. Odeio o que faço? Claro que não! Mas também não adoro. Usando analogias inerentes à minha área, sinto que me tornei uma espécie de robô, configurado para sobreviver, sem viver realmente. Porque, convenhamos, sobreviver é muito diferente de viver. Mas nem tudo é mau, atenção. Um belo dia, já não sei precisar bem a estação ou mesmo o mês, numa das minhas pausas para beber um cafézito no bar ao lado, conheci a pessoa que viria a ser a minha futura esposa. Ela trabalhava numa loja de viagens ali perto e àquela hora costumava ir beber um sumo de laranja. Desde o primeiro dia, perdi-me naquele jeito desajeitado de ser. Sempre que lá ia, procurava o tom negro dos seus longos cabelos, na vaga esperança de uma simples troca de olhares. Sinto falta daquela sensação de formigueiro que sentia sempre que a via. Ainda demorei uns tempos para ganhar coragem e falar com ela. Não nos demos logo bem, muito por culpa da minha inexistente experiência na arte do engate, mas com o tempo, tudo melhorou. No entanto, como tudo tem um fim, a nossa relação não foi diferente. Mas não nos precipitemos. Isso é uma história para mais tarde.
Do nosso finito amor, nasceu a maior alegria da minha vida, a minha linda filha. Nunca tinha pensado muito em ser pai até ter recebido a notícia. Lembro-me como se fosse hoje. Estava a ver um jogo de futebol, sentado no meu sofá preferido, de cerveja na mão. Cliché puro, eu sei. Na sequência de uma jogada de ataque fracassada da minha equipa, ela entra pela sala e mostra-me o teste. No início, confesso que não percebi. Faltavam poucos minutos para o fim do jogo e a ânsia do golo apertava. Quando, finalmente, juntei dois mais dois, desliguei a televisão e abracei-a. Dos melhores e mais apertados abraços que já me lembro de ter dado. Agora que penso nisso, acho que nesse dia a minha equipa perdeu. Azar. Senti medo pela nova etapa que me esperava. Agora, com as voltas e reviravoltas que a minha vida já deu, se há coisa que não me arrependo, é de ser pai.
No que toca a aventuras apaixonantes, impulsionadoras de quadras poéticas, também não as tive. Desde que nasci, nunca saí da minha cidade natal, com exceção de uma ou outra viagem escolar. Para terem uma noção, o pináculo da excitação, desta mediana vida minha, foi um fim-de-semana em Paris com os meus amigos. Nada de muito extravagante, no entanto. Ficamos alojados num hostel a cair de podre e ainda apanhamos uma baita de uma intoxicação alimentar, cortesia da cantina pouco asseada do imóvel.
Pensando bem, e em jeito de conclusão, poderia descrever as minhas vivências numa só palavra: "medíocre". O que não é de todo mau. Há pessoas com menos sorte. Mas quem pensa que esta vida é imutável, que se desengane. Da mesma maneira que uma cinzenta e chuvosa manhã, dá lugar a um solarengo e resplandecente entardecer, uma vida acanhada e pacata, pode ser transformada em algo digno de uma canção. Mas é preciso trabalho e compromisso, com uma grande pitada de sorte, é claro. Mas não se preocupem, a sorte pertence aos audazes, que a usam como a sua derradeira arma do sucesso. Só têm que ser audazes, é claro. Coisa que aprendi a partir daquele dia.
Por esta altura, vocês devem-se estar a perguntar, porque raio estão a ouvir uma história de um homem na casa dos trinta, divorciado e com uma filha. É uma boa pergunta, com uma resposta ainda melhor. Acreditavam em mim se vos dissesse que sou um herói, escolhido para salvar o mundo? Provavelmente não. Na verdade, eu também não acreditaria se não me tivesse acontecido. Afinal de contas, que características tenho, eu, para ser considerado um? Sou corajoso? Nem pensar. Há quem diga que recuar numa discussão é coragem, mas penso que não é a mesma coisa. Sou um hábil guerreiro? Se o meu inimigo for um vírus informático, sem dúvida. Sou descendente de uma grande linhagem? Isso é que era bom. A minha mãe tem hipertensão e o meu pai sofre de gota. Há dias que nem se levanta da cama, pobre coitado. Tenho uma beleza incrível, capaz de arrancar suspiros por onde passo? Também não. Gosto de pensar que tenho uma aparência mediana. Nem bonito, nem feio. Então, porquê eu?
Se vos dissesse já, perdia toda a piada. Prefiro que vão lendo conforme vou contando. Mas preparem-se. Vão entrar num mundo de magia, cheio de vilões de fazer puxar os cabelos e heróis dignos de poemas. Tirando eu, claro. Será que o bem vai ganhar? Sendo o mais sincero possível, não sei. A batalha final é amanhã. Se deixar de contar a história e o mundo for engolido pela guerra e destruição, é porque perdemos.
Nesse caso, boa sorte!
VOCÊ ESTÁ LENDO
As (Des)aventuras do (Não) Herói
FantasyO que têm em comum um simples Engenheiro Informático divorciado, um mundo mágico desconhecido, deuses vingativos e um possível apocalipse? Aparentemente nada, mas como devem saber, as aparências tendem a iludir. Quando quatro Deuses decidem colocar...