Pela minha vida fora, tendo a tentar relativizar os problemas, retirando o peso metafórico que tanta gente gosta de lhes colocar, de forma a levar uma existência mais leve e feliz. Quer seja uma contrariedade no trabalho, ou de foro mais íntimo, deparo-me, a pensar para mim próprio que podia ser pior, havendo pessoas pela vastidão do mundo, a passar por algo ainda mais devastador. É um exercício útil, devo admitir, visto que diminui o negro dos meus dias, permitindo-me vivenciar a minha vida de uma maneira mais genuína e despreocupada. Tudo isso, é muito bonito, contudo, ao passar pelas privações que se erguiam à minha frente, naquela viga esquecida, no tempo e no espaço, comecei a perceber que nem sempre é possível relativizar. Há alturas, em que devemos olhar para nós próprios, avaliando o que correu mal, de forma a não voltarmos a seguir por esse caminho, dúbio e tortuoso. Se o Nelys conseguisse ler esta minha retórica, iria, certamente, gozar comigo à grande, chamando-me de filósofo de dois tostões.
Naquele momento, efêmero, mas brutal, visto e revisto pela lente seletiva dos meus olhos, da minha querida amiga a ser projetada tão cruelmente, sem qualquer guarida ou proteção, algo se partiu dentro de mim, rachando o resto das peças que constituíam o meu ser, de uma forma, talvez, irreparável. Eu sabia que ele era um vilão, enviado para nos fazer mal, mas algo em mim fantasiava que era só para assustar, que tudo não passava de um jogo, ou mesmo uma história, experiênciada do conforto do sofá, onde os heróis raramente saíam com mais do que um arranhão. No entanto, percebi que o jogo que jogava era demais para mim. Que a história que clamava, tinha um fim muito diferente daqueles vistos no cinema. Ali, nas amarras impiedosas da realidade, o herói sofre, magoa-se e morre, como qualquer pessoa, humilde o suficiente para se manter longe destas aventuras.
Distraído pela minha fúria dilacerante, tive que fazer um esforço desumano para perceber a gravidade dos ferimentos de Cleo, desmaiada e empoeirada, contra uma pilha de entulho que ela própria arrastou, com o peso do seu corpo inconsciente. Do sítio onde me encontrava, não conseguia entender o que se passava, conseguindo ver, apenas, o desespero de Nelys, tomado pela angústia das lágrimas, que em cascata, percorriam as maçãs do seu rosto entristecido. Levado por uma onda sistêmica de raiva, movimentei-me na viga, silencioso como um felino, pronto a atacar a qualquer momento a minha presa. Só não sabia, ainda, era como o iria fazer, afinal de contas, não tinha nenhuma habilidade útil para aquela situação.
Quando me preparava para me mostrar ao meu inimigo, levantando o feitiço que me encobria, ouvi os gritos enraivecidos de Nelys, olhando na sua direção. O rapaz franzino e noviço que conhecia, carregava agora uma expressão de dor, apenas carregada por quem vira o impensável, transformando o seu rosto jovial, num verdadeiro esgar assassino. Contra o que esperava, retirou, calmamente, a sua camisola, mostrando os seus débeis músculos, murchos e delgados, inseridos no esqueleto protuberante, saliente por toda a sua pele, tamanha a sua magreza. Podia ver, agora, toda a extensão da tatuagem, desenhada com uma arte e ofício capazes de invejar o maior dos pintores, com traços subtis, mas convictos, prova de uma mão extremamente talentosa. Perto do pescoço, visível para todos, uma cabeça, pujante, de um leão, régio e impactante, conectava-se a um corpo felino musculado, com as duas patas dianteiras em posição de ataque, perto do ombro direito. Já as patas traseiras, contraídas para a sua projeção, delineavam-se até a zona baixa da barriga, acabando perto das suas calças. Como era seu costume, quando se concentrava, fechou os seus olhos humedecidos, encostando um dos dedos ao queixo, tentando conectar-se com a sua magia.
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As (Des)aventuras do (Não) Herói
FantasyO que têm em comum um simples Engenheiro Informático divorciado, um mundo mágico desconhecido, deuses vingativos e um possível apocalipse? Aparentemente nada, mas como devem saber, as aparências tendem a iludir. Quando quatro Deuses decidem colocar...