Os dias adquiriram um tom de cinza. Cancelei os compromissos e resolvi faltar nas aulas do dia seguinte. Me enrosquei com Matheus na cama, e passei o dia deitada e desolada, agarrando o corpo vivo de meu irmão, que uma parte do meu inconsciente acreditava ser um cadáver. Cruel? Muito. Mas o que eu poderia fazer? Se meu irmão infinitamente irresponsável havia aberto o coração para uma garota aparentemente sem o órgão, que resolveu destruir sua vida? E a minha junto. Antes de sair daquele consultório sombrio, o médico que entrou depois da nossa pequena conversa, deu a Math alguns remédios. Muitos. Ele explicou que o tratamento devia ser feito o mais rápido possível, e que as chances de estabilização seriam grandes nesse caso. Ainda assim, não havia cura.
Daniel e Pedro pareciam outras pessoas. Antoni era o único que sorria e tentava nos animar, como se sua alegria pudesse tirar as sombras de nossas vidas. Eu me sentia assim. Sentia que não passava de uma sombra. Eu estava vestindo a camiseta de Pedro há mais de um dia quando escutei a campainha tocar. Deitada na cama ao lado de Matheus, me lembrei que ninguém além de nós estava em casa. Antoni havia saído para resolver algo na empresa do pai, Dani estava no mercado, e Pedro... quem saberia? Então engoli em seco, e desci as escadas para atender a porta, ignorando o fato de estar usando apenas camiseta para tal coisa. Mas claro, me arrependi no instante em que vi quem estava do outro lado da porta. Raissa.
Meu cabelo estava armado e embaraçado, os olhos inchados pelas lágrimas e ainda por cima a roupa... do quase namorado dela. Engoli em seco. Ela, como sempre, tinha aquela aparência perfeita de sempre. A pele morena do rosto cintilava, o cabelo preso em uma trança longa e um sorriso de compaixão nos lábios.
— Oi.
Ela disse baixinho. Me desviei da porta para que ela entrasse, e então tentei murmurar um "oi", que saiu mais parecido com um chiado de uma pata em trabalho de parto.
— Eu... fiquei sabendo. Quis trazer isso.
Ela enfiou a mão na bolsa que carregava, e tirou de lá uma pequena caixinha envolvida em um laço. Mas histórias, normalmente costumamos odiar a garota que rouba o crush da outra. Mas como, como eu poderia odiar essa garota? Puxei o laço devagar, e abri a caixinha. Nela, haviam cinco trufas coloridas, cada uma com uma letra inicial em cima. M, M, D, A, e P. Eu quis chorar pelo carinho. E como me faltava noção e sobrava carência, deixei a caixinha de lado, e abracei a garota, envolvendo meus braços ao redor dela. Ao contrário do que pensei — ou deixei de pensar, ela não me repeliu. Ela me abraçou de volta, e murmurou um "sinto muito".
— Obrigada. — Eu disse depois de a largar. — Isso faz muito diferença.
Ela sorriu. Um sorriso genuinamente iluminado, que a deixava ainda mais linda. Peguei a garota pela mão e a puxei até o sofá, dizendo que faria pipoca. Eram seis da tarde, e eu não deixaria ela sair dali tão fácil depois daquele gesto perfeito. Liguei a televisão e dei o controle em sua mão, antes de sair em direção à cozinha. Em dois minutos enchi um balde de pequenos milhos estourados, e voltei para onde Raissa esperava sentada. Ela havia colocado um seriado qualquer na Netflix.
— Eu não sabia se podia ficar... eu e Pedro não temos nos falado muito ultimamente.
Ela enfiou um punhado de pipoca na boca. Apesar de eu saber que ela merecia muito mais, tive vontade de dizer que ela não era a primeira. Não era a primeira garota que ficava esperando notícias de Pedro depois de ele simplesmente... sumir. Ela merecia a verdade. Mas olhar naqueles olhos profundos de castanho, só me fez querer protegê-la de um coração partido. Eu nunca havia me importado com as amantes dos meus amigos, nunca havia realmente parado pra pensar sobre isso. Mas Raissa... ela era diferente. Era como Rita e Clara, eu sentia que podia ser minha amiga.
— Ele... some as vezes. Acontece com todos.
Sorri sem mostrar os dentes, e isso foi suficiente para ela. Eu sorri... faziam horas desde que não conhecia aquela sensação. Eu havia sorrido, e se eu podia, todos eles podiam também. Uma lâmpada brilhou em minha mente, e devia ter transparecido até a realidade, porque Raissa me olhou animada.
— O que houve? — ela perguntou.
— Tive uma ideia. Espere aqui!
Então larguei a visita na sala, e corri até meu celular no quarto do meu irmão. Matheus ainda dormia com a cara enterrada nos travesseiros. Agarrei o telefone, e escrevi para a garota mais animada que conhecia, cuja ajuda eu havia evitado até então. Eu merecia me animar. Dani, Toni e Pedro também. Meu irmão acima de todos, merecia sorria de novo.
"Está livre hj?" .
Em menos de um minuto, li a resposta.
"Ss. Levo Clara?".
Sorri involuntariamente, pela segunda vez no dia.
"Pd trazer quem quiser".
"Apareço aí umas 7. Prepare o estômago pra mta comida"
Larguei o celular de volta na cama, e corri de volta para a sala, só para avisar Raissa do que aconteceria nos minutos seguintes. O mais rápido que pude, me enfiei debaixo do chuveiro e arrumei uma roupa diferente da que usava. Short jeans simples com uma camiseta larga foi minha escolha, mas dessa vez, pelo menos a camiseta era minha. Um pouquinho de maquiagem no rosto, e depois separar a roupa para meu irmão. Daniel seria o primeiro a chegar, por isso desci para atender a porta antes de tentar acordar Matheus.
— Temos planos. Tome um banho e coloque uma roupa legal.
Daniel franziu as sobrancelhas loiras para mim, enquanto entrava em casa com muitas sacolas penduradas nos braços. Sério? Qual era a dificuldade em fazer duas viagens para buscar tudo?
— Mas antes atenda a porta para Pedro e Antoni, porque vou dar banho no Matheus. Pode usar meu banheiro pra tomar banho.
Daniel concordou e cumprimentou Raissa conforme eu subia as escadas de novo. Já de volta ao quarto escuro do meu irmão, abri as janelas e inspirei ar puro. Ele murmurou contra a pouco luminosidade que entrou, mesmo que o sol já começasse a se esconder.
— Vamos levantar.
Liguei o chuveiro no fim do corredor, e puxei as cobertas do corpo mole de Matheus, antes de começar a tirar suas meias.
— Que droga Margarett. Me deixa morrer aqui.
Aquelas palavras me atingiram em cheio. Meus braços caíram inertes ao lado do corpo, e quase desisti de tudo aquilo. Mas encarei o rosto amassado de sono do meu irmão, e decidi que em certos momentos, ele não sabia o que era melhor pra si mesmo. Eu sabia.
— Não. — Eu disse. E minha voz soou tão firme, que até ele pareceu mais acordado pra escutar. — Não vou te deixar morar aí. Você cometeu muitos erros Matheus, e infelizmente um deles custou sua saúde. Mas sabe por que não te deixo morrer aí?
Ele não disse nada. Só ficou parado me encarando, com as sobrancelhas erguidas, porque sabia que eu iria terminar de falar. E quando o fiz, minha voz soou mais carregada de certeza do que nunca.
— Porque quando você morrer Matheus, seja onde for... eu vou morrer junto com você. E não vai ser aqui nesse quarto mofado. Então levanta dessa cama e vem tomar banho.
Andei até ele é o puxei pelo braço. Pensei que teria que lutar mais, mas finalmente meu irmão cedeu, e me seguiu até o banheiro. Quando finalmente constatei que ele conseguia ficar em pé no banheiro sozinho, sai para buscar sua toalha. E chorei por alguns minutos. As lágrimas que haviam ficado presas em minha garganta. Eu morreria com ele.
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Garota em gotas
RomanceMargarett vive com seu irmão e seus três melhores amigos em uma casa perto da faculdade onde estudam. A garota, que tem o QI acima da média, ao mesmo tempo não tem experiência em outros assuntos, como os do coração. Ao mesmo tempo, assiste seu irmão...