A noite parecia gritar em agonia. Fui despertado pelo estridente grasnir das sirenes e pelo medonho troar dos motores dos aviões. Jovem, pequeno, desprotegido e confuso gritava e corria por minha casa, mãos nos ouvidos e com gritos vigorosos que eram apenas sussurro no vendaval, gritava por minha mãe.
-Mamãe! Mamãe! –Desesperado, berrava a plenos pulmões, corri pela casa desconcertado, esbarrando nos móveis e os fazendo cair, os jarros de cerâmica se juntavam à medonha canção satânica do ambiente lá fora.-Katsuo! –Minha mãe me pegou pela mão e me puxou, nem fui capaz de distinguir seu rosto no meio dos cílios encharcados e das lágrimas de desespero, cambaleava com ações limitadas pelo medo e pela incerteza daquele cérebro infantil.
Saí da casa borrada e em frangalhos, vítima do desespero meu e de meus dois irmãos, o vento sádico se juntava ao demoníaco coral das sirenes e dos aviões. E as árvores numa forçada dança de descrença e desesperança, escravas do cínico senhor vento. Agarrado à minha mãe, sem ver e ouvir quase nada fui arrastado por ela até o flanco esquerdo da casinha, onde uma porta levava para um porão. Minha irmã mais velha e meu irmão abriram o lugar, que tossiu de lá pó e mofo, sequestrados de supetão pela força sobrenatural do vento. As sirenes pigarreavam no pé do ouvido dos habitantes da cidade, malditos presságios ainda desconhecidos por mim. Os aviões traçavam sua rota pelo céu escuro e severo e a cidade toda em gritos de desespero convalescia aos pés do tirano medo. Nada entendia, apenas observava em lágrimas nervosas, fui passado para o colo de minha irmã, que entrou no porão, não entendia o porque de meu irmão estar empurrando minha mãe para dentro do lugar, e ela resistindo, dizendo que ele o deveria fazer.
Tudo foi tão rápido, porém, foi a lembrança mais vívida que tenho daquela fatídica noite. Um dos aviões deixou escorregar por entre seu corpo de ferro uma pequena lágrima negra no horizonte, uma pequenina ogiva lá ao longe, no centro da cidade. Quando a férrea lágrima rancorosa desceu o céu negro, no mar de fogo que era a cidade em meio ao desespero, quando ela encontrou o chão, foi um estrondo, um rugido fero vindo das mais profundas cavernas do orco, que por um instante exalou suas medonhas chamas do rancor que subiram pelo céu, matando tudo aquilo de mais sagrado que o povoava, ao longe o fogo corria em minha direção, um grande paredão de profanadas flamas, e aquele castelo flamejante, em formato de cogumelo que subiu pelo céu negro e fez o inferno voltar à terra por momentos fatídicos. Furiosa como a guerra, incerta como a morte, amaldiçoada como a praga e massiva como a fome o fogo daquele pequeno menino que voou pelo céu choroso, se espalhou pela cidade e foi se arrastando em alta velocidade em minha direção, olhando em meus inocentes olhos e me fazendo fitar sua ferina destruição e meu fadado destino. O vento soprou mais forte por um momento e fechou a porta do porão, que emperrou e não se abriu mais, antes de tudo vi com clareza a primeira vez durante aquela noite, com aquela típica clareza daquele que está prestes a presenciar fraqueza e putrefação, aquela clareza dada a nós pelo destino, para que uma foto sempre esteja guardada conosco, para nos fazer lembrar não que ninguém vive para sempre, mas para nos lembrar que a morte está próxima, sempre está pronta para agir. Vi os olhos vermelhos de minha mãe de perto, cada gota de lágrima e suor rolando por sua íris vermelha e sua pupila embaçada de desespero e suas pulsantes veias como relâmpagos escarlate em direção ao apopléxico poer do sol vermelho que era a íris de minha mãe, não sei dizer o que foi aquilo, mas os olhos dela tinham algo que minhas joviais retinas nunca haviam captado antes, arrependimento, sofrimento, saudade, medo, desespero, aquele olhar que é fardo dos torturados e humilhados, o olhar que refletia o atro vulto da morte com sua foice argentina que abaixou sobre os olhos de minha mãe e irmão, e selou o destino de Amisha, do país oriental de Shambala. Por um momento eu pude ouvir os sinos do fim, e me perguntar o eterno porque de eles dois haverem sujado o jardim...
Nosso jardim.Eu não tinha ideia do que havia se passado naquela noite. Apenas tinha a imagem dos olhos de minha mãe, com o fogo crescente no fundo. Lembro de sonhar com ela todas as noites durante muito tempo. Meu pensamento era vago, e por muito tempo me perguntava quando mamãe e meu irmão iriam voltar. Eu nunca perguntei, pois para a jovial lógica eles voltariam logo, não voltariam? Quanto mais o tempo passava mais eu desconfiava de que eles não voltariam. Foi quando decidi perguntar para minha irmã mais velha Hana quando isso iria acontecer, ela desviava sempre, com perguntas e afirmações sem sentido, mas não questionadas. A vida naquele porão era bem entediante, nunca havia nada para fazer, deitava em minha cama no beliche improvisado e ficava fitando o teto feito de tábuas de madeira e o pó ralo que de lá caía quase constantemente, como uma neve fina vinda das mofadas nuvens do céu amarronzado. Me levantava pisando de leve nas pedregosas lajes finas e caminhava pelos corredores de prateleiras cheias de comida enlatada, pensando em como seria a vida lá fora. Às vezes preferia me perder em fantasias de como seria a fantástica a vida fora de casa, com o grande sol, a linda lua, as perfumadas flores e o cantante vento. Porém, ao mesmo tempo em que eu acreditava que tudo seria fantasia lá fora, me perguntava se o mundo seria aquele que eu deixei do lado de lá, com ferozes ventos, murchas flores, e nuvens em mortiça brincadeira, toldando o sol e a lua. Nunca me dei o trabalho de pensar nisso, para mim tudo seria A grande fantasia. Talvez essa crença fosse fruto das histórias de meu pai, que ele nos contava. Histórias sobre guerreiros, feiticeiros e fantasia, sobre os tempos em que o bem travou guerras com o mal e venceu, lembro das histórias dos cavaleiros da Santa luz celeste de Luxia, da armada do céu noturno de Shian-Kyao. Ou até dos Soldados das dezesseis setas e suas três gerações de cavaleiros.
![](https://img.wattpad.com/cover/261617604-288-k758210.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
Réquiem: Aos velhos tempos
FantasíaUm destino oculto fermenta abaixo das inúmeras camadas de mistério que permeiam a terra e suas rochas imemoriais. Algo rasteja flutuante pelas matas e bosques escuros, gritando ao Empíreo a cada dez noites, na constante lembrança de algo que lhe fo...