Reunião diplomática

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-O que aconteceu por aqui? –Helena perguntou depois de ter abrido a porta de casa. Após o evento inesperado da noite anterior, havia trancado todas as portas e janelas usando algumas runas de trava extras que encontrei gravadas numas pedrinhas-sabão guardadas numa caixa acima do guarda roupa de Helena, em seu quarto. Expliquei a ela o que havia acontecido e a perguntei se sabia o que era aquilo. Ela me respondera que não fazia ideia, logo depois de abrir a geladeira e agarrar um pote de manteiga com uma faca cravada em sua superfície pétrea destampada. Ela abriu o armário negro da despensa, acima da bancada onde ficava a pia, e pegou uma sequência de duas fatias de pão de forma.

-Acredito que tenha sido coisa do Gydex da Shambala. Não sei como fez, mas julgo de boa fé que fiquemos de olhos abertos para qualquer coisa. Precisamos partir logo. Ele deve estar ainda na cidade...se não não haveria como ter feito nenhum tipo de magia...vou pensar nisso, vou pensar.

-Você não pode simplesmente dizer que vai pensar e não fazer nada! -Disse. Era amedrontador ter de confrontar a possibilidade de que aquilo acontecesse novamente.

-Eu farei algo, garota! Mas não vê que preciso pensar? Não posso simplesmente acusar Alrossa de nada sem provas, se fizer isso a união vai se voltar contra mim e eu não estou de muita simpatia com ela. Se minhas decisões políticas saírem assim do esperado por ela todos essas noites em claro vão ser em vão. Eu farei algo, caramba, mas espere. Paciência

Fiquei calada. Era um tanto vergonhoso receber tamanho sermão de lógica sendo uma mulher adulta, foi uma afronta ao orgulho, mas resolvi calar este pobre diabo

-Então...O que vamos fazer? –Perguntei receosa. Ela ficou em silêncio por um tempo enquanto tentava arrancar um pouco da manteiga usando a faca. A faca quebrou.

- De novo? –Ela jogou a faca numa lata de lixo, ao lado da bancada. –O que você tinha dito mesmo? –Agora estava ainda mais receosa de responder por algum motivo

-O que vamos fazer? –Repeti concentrada

-Você vai ficar esperando no escritório. Eu vou preparar o discurso. –Ela respondeu enquanto botava suco de maçã num copo.

-Então vai chamar as nações publicamente?

-Achei que estava óbvio. –Ela tomou o líquido num gole só

-Alguém confirmou presença?

-Lorde Pevöin, mensageiro do rei dos anões. –Ela tomava outro copo num gole –Está vindo sozinho aparentemente. –Um governante ir sozinho num encontro diplomático era grande coisa entre os humanos, já que representava uma confiança grande demais, embora fosse bem comum entre os anões, já que o hábito é para ressaltar que todo problema e assunto a se tratar em tal reunião é dever apenas daquele que compareceu. –O príncipe regente da Carimânia vem acompanhado de sua comitiva. Apenas. –Ela tomou mais um copo- Eles já devem estar chegando, ressaltei que era emergencial. –Ela empurrou o copo para dentro da pia e uma pequena massa de água límpida saiu da torneira e flutuou como com possessão de vontade própria e agarrou o copo, abraçando com seu corpo, a massa possuía dois pontos onde parecia brilhar amarela, como se possuísse dois olhos que pareciam encantados em lamber o suco do recipiente*. Helena abriu a porta de casa com a chave que eu a entreguei e fomos ao seu escritório. Na biblioteca da torre, antes que a porta descesse para nos pegar, fomos barrados pelo majestoso dragão dourado. Ele circulava graciosamente, contorcendo seu corpo em várias direções diferentes, segurando um livro com suas duas pequeninas mãos de três dedos.
-Ah, olá senhorita Gydex. Bom lhe ver hoje nesta manhã tão linda! –Ele disse sorridente
-Passou a noite lá fora de novo, né?
-Longe de mim, senhorita, sou um homem decente! –Ryjiin replicou
-Certeza? Aquele “prateado” que você conheceu não tem nada a ver com isso? –Helena perguntou fazendo aspas com os dedos. Eu ainda me impressionava em como um grande dragão dourado podia viver naquele lugar! Nunca vira antes um dourado, muito menos um deles fora de seu habitat!
-Tá, confesso, não era um prateado, era uma prateada, mas isso não vem ao caso já que ela não lê nenhum tipo de clássico! Dá pra acreditar? Uma mulher sábia como aquela nunca leu Q-Voarin ou Mayra Valli! E eu que passei uma noite inteira tentando formar laços, perda de tempo...mas então, ainda considerando meu pedido de fazer vir uns azuis para cá?
-Não. Não dá para trazer azuis para cá, o bairro dracônico está abarrotado de gente e você pode conhecer muitos por aqui mesmo.
-Lá só tem verdes, pela santíssima mãe! E você sabe, eles são meio...
-Meio mais úteis que você em sociedade? Eu acredito que sim. Bom dia Ryjiin. –A porta desceu depois do comando, o dragão botou a palma no rosto sussurrando
-Inacreditável essa mulher.
Helena se sentou a sua mesa e começou a repetir um texto para si mesmo, fechando os olhos para tentar memoriza-lo mais efetivamente. Me peguei parada em dúvida sobre o que fazer. Me vi obrigada a me sentar a frente da Gydex em uma das cadeiras a frente de sua bancada.
Depois de um tempo, alguém bateu à porta. Com um aceno, Helena pediu para que eu atendesse. Um anão estava ao lado de Gint na porta, ele vestia um manto roxo gritante com triângulos negros na parte mais inferior, e estava adornado com correntes de prata e medalhões de obsidiana. Em sua cabeça carregava uma tiara de ferro polido com uma joia de diamante.
-Senhorita Gydex, Lorde Pëvoin dos Pyakol. –Gint fechou a porta e o anão se sentou na cadeira ao meu lado*
-Quem é a garota? –O anão tinha uma longa barba negra trançada em vários pontos, muito bem cuidada e com nós feitos em fios de prata em algumas mechas, ele tinha um rosto pequeno e nariz achatado, sua pele era parda mas lisa.
-Uma garota. Isto não é relevante. –A gydex pôs o pergaminho de pele à mesa. O anão leu-o atentamente, embora olhasse para mim de esguelha. Virou a folha, botou-a contra a luz do sol, acendeu uma pedrinha de magnésio com o atrito de duas outras pedras que ele manipulou usando magia para ver se havia algo a mais no papel.
-É oficial. –O anão respondeu
-Eu sei. Creio que minhas capacidades de julgamento são confiáveis, meu lorde. –O anão olhou de esguelha para ela
-Você está nos pedindo para botar a cabeça numa guilhotina, tem noção disso não é? –Ele perguntou deixando o papel na mesa
-Perfeita noção disso, e perfeita noção de muitas outras coisas que talvez não estejam claras para você, meu lorde. –Ela se inclinou um pouco à mesa- Uma guerra está para começar, você está entendendo?
-Claro que estou! Meus batedores para os países da UFH não voltaram, tem algo suspeito ocorrendo atrás dos panos. E eu peço perdão, também perdi com a guerra assim como a senhorita, mas não posso arriscar meu povo numa empreitada aberta contra algumas das nações mais poderosas neste globo.
-Podemos parar a guerra antes que aconteça! –Ela replicou batendo o punho à mesa leve e vigorosamente, embora a combinação não seja de tudo usual-Ninguém precisa se machucar, se pressionarmos eles de forma política, se mobilizarmos massas, podemos fazê-los desistir antes de se começar.
-Um não sempre indica nada além de um “não”, senhorita. Venho aqui no objetivo maior de saber onde foram parar meus batedores. Não me interesso em sua proposta, em vista da catástrofe que isso seria para meus confederados anões não apenas de Falin mas de todo o império dwárfico.
-Não chegou nenhum batedor, senhor. Aqui não.
-Então nem você tem noção do que ocorre lá dentro? Que tipo de governante deixa uma decisão internacional acontecer sem que... –Ele foi interrompido
-O tipo que governa um país com três vezes o PIB do seu, agora escuta aqui –Ela apontou o dedo para o anão, que se afundou na cadeira- Eu tenho perfeita noção do que faço e perfeita clareza que o senhor não abandonaria seu dever por nada, assim como seus confederados anões. Todos possuímos este dever e nunca foi fácil exercê-lo, digo em nome de todos do seu povo que lutaram ao meu lado nas trincheiras e não foram poucos que vi morrer. –Ela fazia gestos veementes com o punho, sempre apontando o dedo para o homem- Todos eles servirão ao propósito certo e ao dever que nos foi imposto nos primeiros tempos, quando a Pátria era jovem, então não desejo ver seu povo abandonar o sacro dever dwárfico apenas pela decisão de um mensageiro do rei, pelo ou menos fale com eles das possibilidades e deixemos o povo do subsolo* decidir se querem ou não abandonar o dever de manter a vida e a chama do sentimento vivas, de manter pura a família e a terra, que ficam estéreis na presença de sangue. –Podia ver os dedos das mãos do anão se entrelaçarem e se apertarem, uma gota de suor descia por sua têmpora, caindo ao chão em alguns segundos, que viraram uma eternidade enquanto o silêncio era instaurado e ambos olhavam um para o outro. O anão fechou os olhos por um breve momento e suspirou, virando a cabeça para baixo
-Se tiver mais algum apoio ao lado de seu país, viremos em seu respaldo. Mas se continuar sozinha em sua empresa, estamos fora. Pela honra da minha família e de meu dever. Você tem minha promessa. –Ambos apertaram as mãos e o anão saiu de lá.
-Porque ele não assinou nenhum documento? –Perguntei logo que a porta se fechara
-É desonroso não cumprir a palavra no orbe dwárfico. A palavra é um contrato. –Aquilo parecia a fala mais idiota que eu já havia ouvido aquela mulher dizer.
-Você não pode simplesmente confiar nele! –Eu disse exaltada. Helena deu um sorriso e abanou a clavícula, naquela região algo pareceu se revelar, como se estivesse tremendo bem rápido, mas fosse um vulto. O objeto se revelava aos poucos conforme parava de vibrar, era uma câmera, atada a uma tira cinza de velcro. Ela retirou a coisa e desligou. Dei um sorriso de surpresa, ela sabia o que estava fazendo.
-Um truquezinho que ensinam no exército.
-Mas e agora? Quando vamos sair para ir lá logo? –Disse me referindo aos Montes Brancos. Querendo ou não...ainda não podia tirar a possibilidade de meu irmãozinho estar em perigo, sozinho lá... senti um aperto no coração ao me lembrar dele, pois a lembrança do dever volta sempre a não ser que não se seja humano.
-Logo depois de falarmos com o príncipe regente. Já tenho suas malas prontas e o helicóptero está pronto para sair.
-Fico muito agradecida por me oferecer roupas e as outras necessidades deste jeito. –Estendi a mão fechada apenas com o indicador e o mindinho levantados. Helena pareceu saber o que aquilo significava e deu uma risada baixa, que saiu pelo seu nariz. Ela fechou o gesto encaixando o maior dedo e o anelar no espaço entre os meus dedos. Ela continuou rindo baixo por um tempo
Bem distante, ouvi o som de trombetas, e o barrido de elefantes se aproximando.
-A comitiva do príncipe tem elefantes? –Perguntei embasbacada
-Provavelmente uma hydra do deserto, o barulho é bem parecido. –Helena me respondeu já se levantando. Fomos na direção da Avenida Rybar-son, a principal estrada de Shakai, que ligava o portão da cidade ao centro comercial.
-Aconteça o que acontecer não toque no príncipe ou na família real. Entendida? –Helena alertou. Confusa, acenei positivamente. Nunca tinha visto nada sobre a Carimânia além de uma breve menção dela em “A tragédia de Kartho-Kran, o guardador”. Não era comum que nos ensinassem muito sobre as outras nações não humanas nas escolas ou nos programas de TV ou rádio, apenas falavam fatos rasos.
Os portões principais da cidade se erguiam majestosos ao sol da tarde, que refletia seu brilho nos três grandes arcos de jade, calcedônia e mármore, que se cruzavam fazendo lembrar a superfície de um oceano desenhado por uma criança, com as ondinhas indo para cima e para baixo, os arcos eram extremamente extensos e iam muito além da avenida em si, onde tais estruturas acabavam, repousavam pilares de calcedônia branca e fosca, mas com uma beleza incomparável.
Primeiramente, distingui a paisagem na linha do horizonte para cá. Podia ver as familiares colinas que encontrara no caminho para cá, com pasto verdejante e algumas árvores esparsas. Percebi o porquê de os arcos serem grandes assim quando chegaram os músicos da comitiva.
Eram por volta de quatrocentos homens e mulheres vestidos de roupas púrpuras e panos exóticos, que possuíam pingentes de ouro pendendo das bordas dos panos, as mulheres não cobriam o abdome ou os ombros com seus panos. Os homens vestiam camisa e calça largas, justas apenas na cintura, nos pulsos e nos tornozelos. Eram quatro fileiras de cem pessoas, os tocadores de Sitar, de trompete, de bandolim e as dançarinas com seus bastões de metal compridos, onde elas faziam uma dança graciosa ao redor de tais, às vezes os bastões se dividiam em dois e elas faziam movimentos veementes, como se brandissem-nos como armas.
“Ouçam o canto das areias!”
Começaram a cantar
“Distantes de um lugar além
Cantemos ao salvador do fundo das veias
E não fiquemos sem ninguém

Réquiem: Aos velhos temposOnde histórias criam vida. Descubra agora