Fui até o bairro nobre de Zar-ol, no centro-sul de Shakai, perto dos centros comerciais. Diziam que algo havia acontecido lá, algo, de acordo com jovens anões do sindicato dos estudantes: “Da mais terrível estirpe dos crimes”. Primeiramente me conti, talvez não fosse de meu quinhão visitar tal lugar, mas no final a curiosidade me venceu e eu caminhei a passos rápidos até Zar-ol, mas especificamente até a mansão dos Astor, os famosos chapeleiros. A casa era de tamanho descomunal e fora uma das poucas a sobreviver ao bombardeio, possuía bandeiras de dois países tampando as janelas, de Shakai e de Gran Orla, a mansão feita de mármore branco já estava cinzenta por causa dos horríveis vestígios da primavera do céu rubro. Haviam varandas ataviadas por graciosos parapeitos feitos de pinceladas sinuosas de mármore em todas as janelas tapadas pelas bandeiras. Porém, fosse porque fosse, a casa estava cercada por sinais apregoando que os moradores ficassem distantes da área do crime, eram os famosos brasões mágicos da polícia de Shambala que circulavam pelo local, feitos de luz dourada e com a inscrição abaixo do brasão militar: “Fique longe, cena criminal em análise”. Confuso, procurei alguém que me ajudasse a entender o que havia se passado naquela casa durante a noite anterior, resolvi perguntar para um licantropo de meia idade que por ali passava, ele vestia uma camisa gigantesca de algodão azul e por cima dela um casaco ainda maior de pelo de castor que se fechava embaixo como um sobretudo, ele tinha a fisionomia extremamente grande e forte, com robustos braços, mas com aparentemente pernas curtas, sua pele áspera e cinzenta dava para ele um aspecto selvagem comum a muitos licantropos com forma de rinonceronte, sua cabeça era pertencente a esse mesmo animal e seu chifre lustrado recentemente brilhava à luz do dia.
-Senhor, se importaria de dizer o que houve ali? –Indaguei apontando com o indicador para a mansão Astor
-Só ouvi estranhos boatos que passavam por aí, só sei que houve uma, digamos, acalorada até demais comoção da parte de alguns moradores, exatamente vinte e seis, depois a comoção parou, não sei o que houve. Mas porque queres saber menino? E aliás, porque está aqui?-A voz do licantropo era grossa e até certo ponto ameaçadora, mas ele conotava boa índole.
-Estava caminhando e ouvi uns membros do sindicato estudantil falando de algum crime que tinha acontecido aqui. –Respondi ao homem rinonceronte
-Não devia se aventurar demais pela cidade, garoto, ouça meu aviso: Limite-se às praças e centros e ainda não confie em todos que passam, nem todos são inocentes-Ele disse, mas o que quereria ele dizer? Não quis perguntar com algum medo da impaciência do homem, embora no fundo soubesse que ele era boa gente.
-Tudo bem, moço. Qual é o seu nome aliás? –Antes que o homem fizesse menção de responder, um policial gritou ao longe
-Licantropo! Se afaste do menino! –Ele apontava sua lança regular para o homem rinonceronte perto de mim. O policial estava vestido com uma farda da força militar civil, um macacão azul marinho com o brasão da força militar nas costas, o nome do policial bordado de dourado no bolso e os dizeres em Shambaleano no antebraço esquerdo “A força” e no antebraço direito “A fé” , o brasão militar representava o casco de uma tartaruga visto verticalmente e coroado de trigo e rodeado de arame, tudo em dourado.
-Mas eu não fiz nada senhor oficial! Estava dando uma informação para o garoto! –O licantropo gritou de volta
-Não levante sua voz contra um oficial, licantropo! –Ele gritou se aproximando com um cassetete em mãos
-Pela sagrada rapieira de Emma, senhor oficial, você não me escutaria se eu não gritasse, estás a dez metros de mim! –Ele novamente gritou inofensivo ao oficial, no objetivo de fazê-lo escutar, o oficial já estava bem mais perto
-Você acha que essa sua fisionomia selvagem vai me assustar seu Licantropo maldito?
-Eu não quero lhe assustar oficial! –Ele interrompeu o militar
-Ele não está fazendo nada, senhor!–Exclamei eu mesmo- Só me respondeu o que estava acontecendo!
-Ah, -Ele bufou- Então agora boa gente está à defesa desses malditos miseráveis! Ah, se o tempo não corresse! –Ele se lamentou, seja lá por qual razão.
-É, senhor guarda! –Ele exclamou levemente mais exaltado que da última vez.
-E você cale sua boca imunda!-O oficial gritou irado e vermelho de raiva- Já chega! Essa foi a gota d’água! –O oficial algemou o licantropo, que indignado rugiu
-Não podes me prender por nada! Você está fora de razão!
-É claro que tenho motivos, você levantou a voz contra mim!-O oficial gritou- e agora vai pagar pelo seu crime licantropo imundo! Quem dera não tivesse Jinsei criado essa gente desonrada e ímpia!
-O que eu fiz para merecer tamanha maldição caluniosa!? Nasci!? Tenho outro ponto, sou advogado, já li as nossas leis, e a prisão por falta de educação foi banida em 970, me poupe de seus preconceitos racistas! –O oficial, sem paciência tornou sua palma cheia de relâmpagos* e agarrou o pescoço do licantropo que caiu inconsciente. O oficial jogou-o em suas costas e saiu andando, eu não pude fazer nada. Porque o oficial não gostava do licantropo? Seria por causa da divergência de raças, porque o licantropo era...um licantropo? Que motivo mais idiota! Voltei à minha busca pelo que tinha acontecido lá dentro da mansão, carregando comigo aquele evento e conspícuo, pensando nele, andei automático como um robô em direção à mansão dos Astor. Adentrei a casa já que o oficial que a guardava havia se levantado injustamente contra o pobre licantropo e tinha se ocupado de levá-lo até o centro de contenção mais próximo.
A casa era imensa, e a porta principal a qual adentrara dava para um imenso salão, com duas escadas que levavam até para cima contornando as paredes levemente curvas, as escadas davam para uma espécie de varanda adornada com um parapeito de Umbra*, a pequena varanda interna era segurada por uma grossa coluna forrada por um estofamento de cetim vermelho escuro, a coluna era ataviada por um espelho de Grimm*, de onde constantemente saiam livros com capas diversas e minha imagem lá se refletia, era como se a superfície refletisse coisas do real e irreal, coisas que ali estavam e não estavam, na reflexão haviam livros vindo em minha direção, voando abertos ao meio como se voando usando duas asas e várias pessoas que andavam atrás de mim mas lá não estavam. As paredes eram de tábuas de mogno adornadas com fotos das mais diversas gerações da família, as fotos ovais em moldura dourada nada conotavam ou diziam, mas a última das fotos estava rasgada, como se incompleta e nela deixava-se aparecer um braço feminino com uma pulseira de rubis segurando no ombro de um homem, ao contrário das outras fotos essa foi feita em uma praia e não em frente ao espelho de Grimm. O homem segurava uma criança envolvida em panos.
Um homem se deitava nos degraus, ele tinha a aparência simples e carregava um saco com vinhas* e uma moeda de Sápanen* num degrau abaixo, ele se deitava numa desconfortável posição.
-Senhor... –Disse à ele, que não me respondeu sequer com um movimento- Moço?-Novamente o silêncio arrebatou minha respiração, agachei-me perto do homem e virei seu corpo.
O movimento me revelou uma terrível imagem, a mais terrível das leis do mundo! Os olhos do homem estavam fechados e sua pele estava fria, sangue escorria de sua boca e de uma profunda perfuração em seu peito, me tornei arfante e confuso, ele não estava morto estava? Abri os olhos deles, vazios, fitando o nada como se nada houvesse lá dentro, como se a alma houvesse para sempre sido dizimada e despedaçada pela lei da morte, respirava em arritmia e suava frio, uma sensação ruim tomou conta de meu corpo, estava fraco, como se uma âncora de chumbo me puxasse pelo pescoço, estava frio e pálido como o mesmo homem acabado em minha frente, minha face se contorcia em estranhas expressões alternando entre o horror e a confusão, não pensava direito, e com os pensamentos vazios meu instinto tomou por mim a decisão de correr as escadas para cima e tentar fugir dessa verdade irrefutável, ela me perseguia como um espectro zombeteiro e se agarrava ao meu pescoço me deixando sem ar, sequer percebi que haviam ali mais de um corpo, haviam vinte e seis, exatamente. Muitos, em todas as posições, estirados no lustre de cristal na varanda depois da escada e muitos outros deitados pela escada como se o espectro que me perseguia trouxesse contigo uma trilha de podridão, um caminho escarlate feito de sangue e arrastasse sua foice pelo chão, pesada e inevitável, eu vi ela ali, o vulto do malsim que anunciava a desgraça, a onírica e tão real sombra sobre ímpios trapos de seda negra e seus olhos escarlate que se aproximavam cada vez mais, olhos vermelhos como os de minha mãe no fatal dia que eu tão bem lembrava! Lembranças essas que eu não escolhi carregar, infortúnio! Maldito presente do destino que deu a mim a lembrança dos tristes olhos de minha mãe, e, oh sardônico destino! Nos olhos do atro vulto do malsim pude ver meu olhar desesperado e triste como o de minha mãe, Eis o olhar dos condenados! E ei-lo a guarnecer meu semblante refletido no vulto do malsim! Minha visão escureceu, o mundo pareceu perder sua cor por instantes, minha garganta seca parara de conduzir minha respiração, logo tudo acabou, encerrou-se! Caí num profundo sono sem sonhos, onde voavam por um éter negro como as sedas do malsim luzes azuis, amarelas, vermelhas e verdes, que misteriosa e vagamente apareciam, e tão misteriosas furtivas e vagas como haviam surgido desapareciam, uma estranha dança de luzes calmas e vagas, que pareciam fundir-se com o negro e dar a ele alguma cor.Notas:
Palma cheia de relâmpagos: Feitiço do caminho do relâmpago, classificado como encantamento, baixo uso de energia. Tem Palma azul como nome popular.
Umbra: Madeira extremamente escura e resistente, raramente é riscada, vem da árvore de Umbra, nativa das terras do norte de Numensenai, continente ao norte da Váhria
Vinhas: As vinhas possuem um significado simbólico, que representa a figura de Jinsei, da caridadez do amor e do sacrifício dos justos.
Moeda de Sápeo: Moeda sem valor comercial, feita de latão, tem caráter simbólico e dizem atrair sorte e prosperidade, possui uma abertura quadrada no meio e a figura de um sapo vendado
Espelho de Grimm: O espelho de Grimm é um item mágico feito primeiramente por Thomas Grimm, feiticeiro da escola de Luna, em Lio-Lam, o espelho serve como porta para armazenar certos itens e para a comunicação entre pessoas, um espelho de Grimm é sempre conectado a outro e eles servem como uma abertura entre esses dois locais. O espelho também possui a capacidade curiosa de refletir algumas coisas que não parecem em estar lá...

VOCÊ ESTÁ LENDO
Réquiem: Aos velhos tempos
FantasiaUm destino oculto fermenta abaixo das inúmeras camadas de mistério que permeiam a terra e suas rochas imemoriais. Algo rasteja flutuante pelas matas e bosques escuros, gritando ao Empíreo a cada dez noites, na constante lembrança de algo que lhe fo...