2.

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Tomo um longo banho depois da escola. Faltam alguns minutos pras cinco e meia e o céu já escurecia.

Ponho um vestido, guardando minha saia e o blazer do uniforme da escola em cima da cômoda. Preciso antecipar algumas atividades da semana. Se quisesse mesmo ir acampar, teria que manter minha mente desocupada dos afazeres da escola.

Me sobressalto.

Eu estou mesmo pensando em ir.

Tomo coragem e atravesso a rua da minha casa indo em direção à oficina de carros.

Meu pai trabalha o dia inteiro e só volta depois das seis quando faço o jantar que não é lá essas coisas. Minha tia que normalmente cozinha em casa, mas ela viajou a trabalho essa semana. Prevejo que ela volte amanhã à tarde.

— Oi. — abri um sorriso passando por ele para ajudá-lo com as ferramentas. Meu pai acena curvado sobre o capô aberto de um Ford.

Com o tempo livre que tenho depois de fazer minhas atividades e trabalhos da escola e faxina em casa, acabei aprendendo um pouco sobre mecânica com o meu pai.

Sei um pouco sobre tudo quanto é automóvel. Isso vai de carros à barcos e jetskis. Quando era mais nova, sonhava em um dia trabalhar com algo parecido, tipo engenharia mecânica, mas papai acha pouco para "alguém com o futuro brilhante". Ele quer que eu faça medicina ou algo maior.

Todos sabem que eu desmaio quando vejo sangue ou qualquer coisa do tipo. Foi complicado pra ele me manter de pé quando arranhei o joelho andando de bicicleta quando tinha cinco anos, imagina ter que fazer cirurgias e mexer com bisturis.

Me arrepio só de pensar.

— Como foi na escola? — perguntou como sempre. Não deixando de suavizar a carranca na cara.

— Normal. — respondo dando de ombros, como sempre. Lhe entrego a chave de fenda — Sabe, pai, eu tenho me saído muito bem todos esses anos no São Martim, e...

— Não tenho dinheiro. — interrompeu, resmungando. Ele nem se quer me olhou para ter certeza que era isso.

— Não preciso de dinheiro, papai. — avisei, seriamente. Nunca fui de pedir algo do tipo pra qualquer coisa a menos que fosse para a escola, o que é prioridade na minha vida.

— Você quer dormir de novo na casa da Maylla? Já é a segunda vez em quase um mês.

Como se isso fosse muito pra alguém que só sai de casa pra dormir na casa da única amiga, pensei.

— O pessoal da turma vai acampar. — digo de uma vez tomando coragem, apesar de já saber sua resposta inicial.

— Acampar? Ficou maluca? — endireirou as costas, e finalmente me olhou.

— O pessoal do último ano tá planejando ir antes da formatura, e as irmãs da Maylla vão, você sabe que elas não iriam se tivesse algo ruim ou proibido por lá, o pai delas é rígido como o senhor.

— Claro que é. Por que acha que somos amigos? — retrucou, mais humorado.

Ele tem razão. Ele e o senhor Brito são amigos de longa data. Costumo ouvir algumas histórias sobre os dois brincando na rua quando crianças, até os Brito ganharem na loteria e mudarem de vida.

Ele se mudou pra Península, a parte mais rica da ponta nobre da ilha, começou a estudar no São Martim, e mesmo assim, senhor Brito nunca deixou se ver o papai, mesmo depois de casados, mesmo depois dos filhos. Foi ele que ajudou a conseguir minha bolsa de estudos lá — Claro, as minhas notas ajudaram quase que 90% nisso.

Os Brito são minha segunda família por aqui, e mesmo sabendo que eles e meu pai sempre estão apoiando um ao outro, papai nunca mediu esforços para me acostumar com as mordomias que os outros alunos com quem convivo têm. Eu não posso pagar por aulas extracurriculares, não posso ir até a sorveteria da outra rua da escola, não devo ir com Hélio todos os dias. É por isso que quase sempre não aceito carona da Maylla, ele não deixa. Não quer que eu me torne uma mimada.

— Eu não tenho certeza de que ele vai permitir que as meninas acampem, mas se ele permitir, eu também posso...

— Não. — me interrompeu, mais uma vez.

— Mas, pai...

— Não. E não me questione. — voltou a se curvar sobre o capô do carro.

Ia me virando, dada por vencida e voltando pra casa, mas pela primeira vez na vida, eu quero me divertir um pouco com os meus amigos.

Então, eu me virei.

— Por que? — indago, o desafiando com o olhar. Sinto minhas pernas fraquejarem.

— Você está me questionando? — me encarou, com a testa enrugada e cara de quem iria matar uns dez.

— Eu sempre aceitos suas recusas, mas nunca sei o porque do senhor nunca me deixar sair com meus amigos. Eu preciso ter amigos, sabia? Tipo, mais que uma só. — fecho minhas mãos em um punho sentindo que estou jogando todas as minhas frustações durante esses anos de uma vez só em cima dele — Eu quero ir ao cinema e tomar sorvete na porcaria da sorveteria chique. Posso economizar pra pagar uma mísera casquinha, mas só quero ser uma adolescente sociável e normal.

Meu pai me observou por alguns segundos processando tudo o que acabei de falar. Ele se virou e simplesmente voltou a consertar o carro.

— Vá pra casa.

Diz, simplesmente.

Solto um suspiro atravessando a rua e entrando dentro de casa como um furacão. Me jogo em minha cama quase arrancando os livros da minha mochila e começando meus deveres. Isso me acalma de uma certa forma que me irrita. Eu já estou muito irritada com o meu pai, mas ao menos me estressaria com outra coisa que não fosse ele.

☀︎︎

Assim que termino de escovar os dentes, recebo uma mensagem de Maylla avisando que depois de muitas discussões e debates estoicos entre ela e senhor Brito, ele cedeu com a condição de que ela vigiaria Leia e Luna durante toda a viajem.

Como se você fosse reparar na existência delas enquanto estivesse em uma ilha deserta cheia de garotos.

É tão gratificante saber que você me conhece tão bem!

Solto uma risada ao receber sua mensagem.

Lhe conto sobre o meu pai. Eu acabei jantando cedo e não o vi chegar da oficina, mas provavelmente ele já está em casa assistindo alguma coisa na TV enquanto come.

De vez enquando, o pego entrando em meu quarto furtivamente enquanto pensa que estou dormindo, e me dá um beijo de "boa noite" na testa e sai de mansinho. Mas se eu perguntar, ele jura de pés juntos que nunca nem se quer passou pela porta do meu quarto. Ele tem vergonha e admitir que tenta ser um pai carinhoso.

Sei que se esforça pra isso desde que a mamãe morreu, mas é difícil pra ele, por isso o entendo e não lhe julgo quando se recusa a me deixar sair sozinha. Ele tem medo de me perder como perdeu a mamãe, e eu também temo por isso, mas não quero passar minha adolescência inteira dentro de casa tendo só uma amiga.

Eu sabia que o tio Luís não ia deixar! Mas conversa com sua tia. Ela é toda maluquinha, sei que pode fazer a cabeça dele.

PRECISAMOS IR, TATÁ.

Não vai ser o mesmo se você não for.

Recebo um número exagerado de imojis chorões.

Dramática, penso alto não contendo o sorriso em minha boca.

Vou postar a parte 2 já já!
Votem e comentem muito!
Até greve se
F.P

Pedras E SardasOnde histórias criam vida. Descubra agora