Capítulo V

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— Como? — gaguejo a muito custo.

— Você foi intimada a ir a Summerton — ela repete, apontando para a porta. — Vamos escoltá-la. Por favor, venha.

Uma intimação. Para um vermelho. Nunca na vida ouvi falar disso. Então, por que eu? Oque fiz para merecer isso?

Por outro lado, sou uma criminosa. Sinto todos os nervos do meu corpo pinicarem; casa um dos meus músculos está tenso e pronto. Preciso correr, apesar dos agentes bloquearem a porta. Vai ser um milagre se eu conseguir chegar até a janela.

— Acalme-se. Por favor, venha.

Para minha surpresa, ela até sorri, apesar de os agentes levarem a mão à arma. Isso gela meu sangue. Negar uma ordem da polícia, recusar uma intimação real significa pena de morte não apenas para mim.

— Tudo bem — digo baixinho enquanto solto a mão que me segurava, era minha mãe. Ela tenta agarrar de novo, mas meu pai a puxa para trás. — Vejo vocês mais tarde?

Minha pergunta paira no ar. Sinto a mão cálida de meu pai acariciar meu braço. É seu jeito de dizer adeus. Os olhos da minha mãe marejam de lágrimas não derramadas. Antes que eu hesite ou solte o choro, um policial me toma pelo braço e me leva para fora.
As palavras forçam passagem por entre meus lábios, embora sejam pouco mais que um suspiro.

— Amo vocês.

E então a porta bate atrás de mim, acabando com meu lar e minha vida. Eles me apressam pelo vilarejo ao longo da estrada que dá para a praça do mercado. Passamos a frente do casebre de Nayeon, mas agora, imagino que ela deve estar descansando, já que teve que levantar cedo para ajudar com algumas cargas. Parte de mim quer dar um grito de despedida, mas me seguro. Ela irá aparecer em casa atrás de mim e minha mãe irá contar tudo.

Na praça, um veículo preto brilhante está às espera. Estacionado com quatro rodas, janelas de vidro: parece uma fera pronta para me devorar. Um oficial sentado diante dos controles liga o motor quando nos aproximamos. A cusparada de fumaça preta tinge o ar matinal. Sou forçada a entrar na parte de trás sem que me digam qualquer coisa. A jovem criada se ajeita ao meu lado pouco antes de o veículo acelerar pela estrada a uma velocidade inimaginável. Esta será minha primeira — e última — viagem num destes.

Quero falar, perguntar o que está acontecendo, como vão me punir pelos meus crimes, mas sei que minhas palavras não seriam ouvidas. Então apenas olho pela janela o vilarejo desaparecer à medida que entramos na floresta, avançando pela familiar estrada do Norte. Não está tão cheia quanto ontem, e o trajeto está pontilhado de agentes.

A muralha de diamante brilha adiante, refletindo o sol que se levanta nos bosques. Quero fechar os olhos, mas resisto. Sei que tenho que mantê-los abertos aqui.

O portão está cercado de uniformes pretos, agentes que verificam os viajantes que entram. Quando o veículo encosta. A criada me tira de lá e me conduz até o portão sem pegar a fila. Ninguém protesta ou se dá ao trabalho de verificar sua identidade. Ela deve ser conhecida por aqui. Assim que entramos, a criada me encara.

— Meu nome é Ann, a propósito, mas aqui quase sempre atendemos pelo sobrenome. Você pode me chamar de Walsh.

Walsh. O nome soa familiar. Combinando com o seu cabelo desbotado e com pele bronzeada, só pode significar uma coisa.

— Você é de...?

— De Palafitas, como você. Gostaria de não ter conhecido Nayeon, aquela safada.

— Não conheço você, mas logo conhecerei muito bem.

Não consigo mais segurar:
— O que isso quer dizer?

— Quer dizer que sua jornada de trabalho aqui vai ser longa. Não sei quem contratou você ou o que disseram sobre o emprego, mas cedo ou tarde você sente o peso. Não é só trocar lençóis e fronhas e lavar pratos. Você precisa olhar sem ver, ouvir sem escutar. Somos objetos aqui, estátuas vivas feitas para servir. — Ela suspira baixo e abre uma porta pesada construída bem ao lado do portão.

Ela cruza a porta e, aparentemente, também o muro. Leva um tempo para eu perceber que está descendo uma escada, e por isso sumiu em meio à semiescuridão.

— O emprego? — insisto. — Que emprego? O que é isso?

Ela se vira para mim com cara de tédio.

— Você foi intimada a assumir um posto de criada — diz, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

Trabalhar. Um emprego. Quase desmaio só de pensar.

(S/N). Ela disse que tinha um bom trabalho — e agora mexeu os pauzinhos para que eu também tivesse. Talvez até trabalhe com ela.
Meu coração dispara diante da possibilidade, sabendo o que isso implica. Não vou morrer, não vou para a guerra. Vou trabalhar e viver.

— Continue andando. Não tenho tempo para levar você pela mão.

Sigo Walsh por um túnel incrívelmente escuro. Pequenas lâmpadas brilham na parede o suficiente para iluminar o encanamento e a fiação sobre nós. Ha um zunido por causa da água corrente e da eletricidade.

— Onde vamos? — sussurro finalmente.

Quase ouço o desânimo de Walsh, que finalmente se volta para mim, confusa:

— Para o Palacete do Sol, claro.

Sinto meu coração parar por um segundo.

— Quê? Como? O palácio? O palácio de verdade?

Ela da um tapinha na insígnia no uniforme. A coroa reluz sob a luz baixa.

— Você serve ao rei agora.





Prepararam um uniforme para mim, mas quase não o noto. O cenário é maravilhoso demais para isso: tijolinhos de argila e um piso com mosaicos brilhantes num cômodo esquecido na casa do rei. Outros criados correm para lá e para cá num desfile de uniformes vermelhos. Presto atenção nos rostos, procurando por (S/N) para poder agradecer, mas ela não aparece.

Walsh permanece ao meu lado, sussurando conselhos:

— Não diga nada. Não escute nada. Não fale com ninguém, pois ninguém vai falar com você.

Mal consigo guardar as palavras.

— Você chegou num dia cheio, talvez o pior que veremos.

— Vi os barcos e dirigíveis. Faz semanas que os prateados estão subindo o rio — comento. — Não é normal, mesmo para esta espoca do ano.

Walsh me apressa e bota uma bandeja com taças brilhantes nas minhas mãos. Com certeza eu poderia comprar a minha liberdade e a de Nayeon com elas, mas o palacete tem um guarda em cada porta ou janela. Nunca conseguiria escapar de tantos agentes, nem com toda a minha habilidade.

— O que vai acontecer hoje? — pergunto, demostrando minha inocência. Uma mecha escura de cabelo cai sobre meus olhos. Nem tenho chance de soprá-la para cima: Walsh a bota de volta no lugar e prende com um grampo minúsculo, com movimentos rapidos e precisos. — Fiz uma pergunta idiota? — emendo.

— Não. Eu também não sabia disso antes de começarmos os preparativos. Afinal, há mais de vinte anos isso não acontece, desde a escolha da rainha Leonor — Hoje é a Prova Real. As filhas Das Grandes Casas, das mais ilustres famílias prateadas, vieram se oferecer ao príncipe. Vai acontecer uma grande festa, mas agora elas estão no Jardim Espiral, preparando-se para se apresentar ao príncipe na esperança de serem escolhidas. Uma dessas meninas será a próxima rainha. Estão brigando com unhas e dentes pela chance.

Uma imagem de um bando de pavões me vem a mente.

— Mas como é? Elas dão uma voltinha, dizem umas palavras e piscam pra ele?

Walsh torce o nariz e balança a cabeça.

— Improvável... — responde. Em seguida, com bilhos nos olhos anuncia: — Você está escalada para hoje, então vai ter a chance de ver com os próprios olhos.

RED QUEEN - Imagine Mina (TWICE)Onde histórias criam vida. Descubra agora