Capítulo VIII

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Quase fico maravilhada quando uma animos, com o poder de controlar os animais, convoca mil pombas do céu. Quando os pássaros mergulham de cabeça contra o escudo elétrico e explodem em nuvenzinhas de sangue e penas, minha admiração vira repulsa. O escudo faísca e queima os restos dos animais até brilhar como novo. Quase vomito ao som dos aplausos quando a animos de sangue frio submerge de volta.

Outra garota — espero que a última — surge na arena que está reduzida a pó.

— Ryujin, da Casa Samos — grita o patriarca da família de cabelo prateado. Ele fala sozinho, e sua voz ecoa pelo Jardim Espiral.
Do meu lugar privilegiado, percebo o rei e a rainha endireitarem-se nos assentos. Ryujin já tem a atenção deles. Em claro contraste, (S/N) baixa a cabeça e olha para as próprias mãos.

Enquanto as outras usavam vestidos de seda e umas poucas trajavam estranhas armaduras douradas, Ryujin aparece com uma roupa de couro preto. Jaqueta, calça, botas: tudo cravejado de prata maciça. Não, não é prata. Ferro. Prata não é tão fosca ou dura. Sua casa torce por ela, todos de pé. Ela pertence à mesma família de Christopher e do patriarca. Mas outras famílias também torcem. Querem-na como rainha. Ela é a favorita. Ryujin saúda a todos levando dois dedos às fronte, primeiro para sua família e depois para a família real. O rei e a rainha devolvem o cumprimento, favorecendo descaradamente a garota.

Talvez isso seja mais parecido com os shows do que eu pensava. A diferença é que em vez de mostrar para os vermelhos seu lugar, aqui o rei mostra ao seus súditos — não importa quão poderosos sejam — o lugar deles. Uma hierarquia dentro de uma hierarquia.

Presto tanta atenção às provas que quase não noto quando é minha vez de servir novamente. Antes de alguém me dar um cutucão para mostrar o caminho, parto para o camarote certo. Mas escuto o patriarca dos Samos falar mais uma vez. Acho que disse "magnetron", mas não faço ideia do que significa.

Desço pelos estreitos corredores — antes amplas passarelas — até os prateados que solicitaram um criado. O camarote fica na parte de baixo, mas sou rápida e chego lá num piscar de olhos. Me deparo então com um clã especialmente gordo, vestido de amarelo berrante e penas horríveis, degustando de um bolo enorme. Pratos e taças vazios emporcalham o ambiente. Ponho-me a trabalhar para limpar tudo com as minhas mãos rápidas e treinadas. Um monitor de vídeo dentro do camarote exibe Ryujin, que parece imóvel na arena.

— Que farsa é essa? — um dos pássaros gordos e amarelos resmunga enquanto enche a boca. — A menina de Samos já ganhou.

Estranho. Ela parece a mais fraca de todas.

Empolgo os pratos, mas mantenho os olhos na tela para assistir às proezas dela naquele cenário arrasado. Não parece dispor de nada com que trabalhar, com que mostrar o que pode fazer, mas não dá a impressão de estar incomodada. Seu sorrisinho é terrível, como se estivesse plenamente convencida da própria glória. Não vejo qualquer glória nela.

As peças de ferro na sua jaqueta se mexem. Flutuam no ar, como balas de metal. E então, como disparos de uma arma, explodem para longe de Ryujin, perfurando o pó, as paredes e mesmo o escudo elétrico.

Ela consegue controlar metais.

Vários camarotes aplaudem, mas ela está longe de ter terminado. Rangidos e chiados ecoam até nós vindos de algum subterrâneo do Jardim Espiral. Mesmo a família gorda para de comer e observa ao redor, perplexa. Todos ficam confusos e intrigados, e consigo sentir a vibração bem debaixo dos pés. Tenho medo.

Com um estrondo arrasador, canos de metal rompem o chão do Jardim, erguendo-se desde as profundezas. Atravessam as paredes e cercam Ryujin na forma de uma coroa cinzenta de metal retorcido. Ela parece rir, mas o baque ensurdecedor do metal abafa qualquer som.

O escudo elétrico faísca, mas Ryujin se protege sob a sucata. Ela bem sequer suou. Por fim, deixa o metal cair num barulho horrível e olha para o céu, para os camarotes acima. A boca escancarada. Ela parece faminta.

Começa devagar, uma leve mudança no equilíbrio, até que o camarote inteiro é tombado. Pratos estilhaçam-se no chão e taças de vidro rolam para a frente, esbarram no para peito e se despedaçam contra o escudo elétrico. Ryujin está arrancando nosso camarote, inclinando-o para frente para cairmos. Os prateados ao meu redor guincham e se agitam; os aplausos viram pânico. Eles não são os únicos: todos os camarotes da nossa fileira vão com o nosso. Lá embaixo, Ryujin — o cenho franzido de concentração — controla tudo com apenas uma das mãos. Como os lutadores nas arenas, quer mostrar ao mundo do que é capaz. É isso que penso quando uma bola amarela de pele e penachos bate contra mim, lançando-me por cima do parapeito com o resto dos talheres.

Tudo fica roxo durante a queda; vejo apenas o escudo se aproximar. A eletricidade silva, queima o ar. Mal tenho tempo de entender, mas sei que aquela cúpula tramada em roxo vai me cozinhar viva, me eletrocutar com uniforme vermelho e tudo. Aposto que a única preocupação dos prateados será quem vai limpar a sujeira.

Minha cabeça bate contra o escudo. Vejo estrelas. Não, não são estrelas. Faíscas. O escudo cumpre sua função: frita-me com raios elétricos. O uniforme queima, fica chamuscado, tostado. Aguardo o momento em que minha pele vai ficar assim também. Meu cadáver vai ter um cheiro ótimo. Mas por algum motivo, não sinto nada. Devo estar com tanta dor que não sinto.

Mas... Então posso sentir. Sinto o calor das faíscas subindo e descendo pelo meu corpo, incendiando cada nervo. A sensação não é ruim, porém. Na verdade, me sinto viva. Como se tivesse sido cega a vida inteira e agora pudesse enxergar. Alguma coisa se move sob minha pele, mas não são faíscas. Olho minhas mãos e meus braços, admirada com a eletricidade que paira sobre mim. A roupa continua a queimar, abrasada pelo calor, mas minha pele não muda. O escudo continua a tentar me matar, mas não consegue. Está tudo errado.

Estou viva.

RED QUEEN - Imagine Mina (TWICE)Onde histórias criam vida. Descubra agora