Rodrigo C. Pereira
Que a vida não basta e a literatura venha em nosso socorro é tese antiga e ainda em voga. Amarrados a uma linha temporal, a um recorte do espaço, a um corpo canhestro e fadado ao desaparecimento, aspiramos a horizontes mais amplos do que os disponíveis; e a arte literária tem sido nosso consolo nessa inescapável condição.
Em nossos saltos para além das constrições presentes, lemos e escrevemos utopias para sonharmos; e, desde o século 20, escrevemos e lemos distopias para lidarmos com nossos pesadelos. A ficção científica, embora não seja proprietária desses dois subgêneros, é que nos tem apresentado seus exemplos mais marcantes.
Deco Sampaio é um escritor de ficção científica. Não que ele seja um especialista, dado que explora com sua pena outras geografias literárias, inclusive a poesia. Mas Deco tem a vocação para essa alquimia de arte e ciência, de possível e impossível, de sonho e técnica.
Uma encomenda para um novo mundo, seu romance de estreia, foi sucesso de público e crítica no Wattpad, plataforma digital de autopublicação, síntese feliz de "editora", biblioteca e rede social. Em 2016, ano em que ingressei no Wattpad, o livro do Deco havia vencido o Wattys, o mais cobiçado prêmio de lá. Também foi agraciado com o Prêmio Línguas & Amigos e o Prêmio Drummond. Os comentários aos capítulos da obra, em sua maioria carinhosos, eram constituídos em grande parte por manifestações de surpresa e de interesse pelos próximos (o processo de publicação no Wattpad lembra o dos folhetins do século 19), o que mostra o quanto o autor soube manejar a trama futurista em que Tomás Waldmann desperta do coma em um Brasil distante, no tempo e na configuração social, das memórias do perplexo protagonista.
Um Brasil em que as relações entre homens e natureza tendem à harmonia e uma nova economia coloca o país como exemplo no concerto das nações. Uma utopia, portanto, em tempos nos quais a sci-fi está saturada de pessimismo, vide o sucesso da série Black Mirror. O que explicaria, então, o sucesso de um livro que nadava contra a corrente?
Sigamos além da qualidade do enredo; eu diria que a vitória do livro de Deco está na esperança, essa incansável. Mas uma esperança fundada em premissas verdadeiras: o autor, ele mesmo cientista, ele mesmo ambientalista, ele mesmo um homem que dedica a vida a encontrar soluções, construiu um universo em que as inovações tecnológicas não saem do ar, mas de pesquisas existentes, cuja aplicação dependeria de vontade política. Perguntei-lhe certa vez por que motivo ainda não escrevera um livro de divulgação científica, a exemplo de um dos seus autores preferidos, Carl Sagan; Deco me respondeu que já teria feito isso em grande parte no seu primeiro romance.
A resposta foi surpreendente, porque Uma encomenda para um novo mundo não é um livro paradidático. Trata de busca da identidade, como tantos livros de Philip K. Dick; trata de novas disposições sociológicas, como tantos livros de Asimov; trata de amor e sacrifício, como tantas grandes obras, de ficção científica ou não.
De 2016 para cá, uma boa amizade vem se desenvolvendo entre mim e Deco, um homem inteligente e íntegro. Isso foi possível por meio da tecnologia de comunicação, que permitiu o encontro de um obscuro escritor maranhense com o cientista, ficcionista e músico do Paraná.
No passado, alguma mente imaginativa vislumbrou coisas assim; que a esperança vislumbrada por nosso autor, portanto, se concretize.
São Luís, dezembro de 2020.
Rodrigo C. Pereira é escritor, poeta e professor, mestre em Teoria e História Literária e autor de As portas fugazes (Portugal, In-Quatro, 2019) e O mendigo Iohanan (O Grifo, 2020).
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Uma Encomenda para um Novo Mundo
Science FictionTomás acorda de um coma em uma época à frente de seu tempo e descobre em 2333 um mundo renovado: o Brasil se tornou um país admirável e as pessoas são educadas e altruístas. Atormentado por memórias desconexas, ele desvenda seus vínculos e segredos...