2. MALDITAS SURPRESAS DA VIDA

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Brasil, Litoral Paranaense, ano de 2313

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Brasil, Litoral Paranaense, ano de 2313.


VINTE ANOS ANTES de precisar atravessar o deserto do Atacama, de começar esse relato, tive o mais horrendo episódio que uma pessoa pode passar. Naquele dia, eu não sabia que, além dos meus vinte e oito anos vividos, eu tive outros. Tinha o corpo jovem e achava ser dono de uma vida simples e curta.

Sinto terror de lembrar dessa data específica. Vou me esforçar porque é crucial para este registro. Foi quando se deram os eventos que me levaram a saber do meu compromisso neste deserto.

Nos anos de 2300, a sociedade baseia suas ações na conservação ambiental. A humanidade aprendeu a respeitar a Natureza. Uma vitória estrondosa, foi o que fizemos. Durante o século XX e XXI, época da minha primeira fase de vida, cientistas advertiram que um holocausto biológico estava acontecendo. Espécies desapareciam em uma velocidade maior que a natural, devido às ações humanas. Éramos a praga de nós mesmos.

No ano de 2014, o renomado biólogo Edward Osborne Wilson indicou a necessidade da restauração de áreas naturais conectadas, que recobrissem a metade da superfície do planeta. Florestas, campos, savanas, mangues, cobrindo a metade de tudo. Uma solução para manter os ecossistemas funcionando, para nos gerar recursos (água, ar, solo, polinizadores, biodiversidade...) e para captar a maior parte dos gases que estavam desregulando "nossa" estufa.

Eu concordava com a estratégia. Boa parte da humanidade não. Afinal, as maiores indústrias de alimentos, energia e combustíveis teriam de fazer adequações que trariam o que eles chamavam de holocausto econômico.

Além da restauração de áreas naturais eu previa que o segredo da mudança do mundo estava, em grande parte, concentrado na agricultura e na criação de animais. Foi a partir deles que formamos nosso sistema social que, nos anos 2000, avançava para um desastre. Pensava que, conduzindo essas produções para ideais conservacionistas, seria como girar a chave para uma melhora. Muitos pensavam como eu. Talvez você que esteja recebendo essa mensagem também. Claro que tudo associado a uma mudança comportamental da humanidade de proporções escandalosas. Nem sei se "escandalosa" é o termo mais apropriado. Talvez não exista adjetivo para dimensionar o tamanho disso.

Era evidente que, com a globalização e o crescimento populacional, alterações sociais e econômicas, com vistas à conservação da Natureza, eram necessárias para se ter um desenvolvimento que levasse à uma melhor qualidade de vida para todos. Parece tolice dizer isso agora que tudo é tão óbvio, loucura pensar que um dia isso foi polêmico.

Em 2313, acreditem, a Floresta Atlântica, tecnicamente chamada por nós especialistas de Floresta Ombrófila Densa, a floresta amiga das chuvas, que foi grotescamente desmatada em um passado trágico, já recobria uma área imensa do Brasil, em especial a do Estado do Paraná, abrigando a maior diversidade de vida do planeta. Eu presenciei essa floresta sendo restaurada, foi como um milagre. Enfatizo o "como", porque sei que não foi nada místico, nada mágico. Foi o trabalho como de um restaurador de obras de arte.

O litoral paranaense, em 2313, já era considerado um dos mais selvagens do Brasil. Após alguns maremotos e a destruição completa de municípios como Matinhos, Paranaguá, Antonina e dos principais balneários dali, uma extensa praia ocupou o que antes era urbano.

As chamadas comunidades anárquicas instalaram-se em locais planejados e estruturados no litoral, em todo o Brasil, na verdade. Trouxeram um turismo eficiente e cuidadoso, pesca produtiva e sustentável.

Passei férias nessas comunidades. Nos divertíamos nas águas translúcidas e mornas, nadávamos com golfinhos que nos ajudavam na pesca, mergulhávamos na companhia de centenas de espécies marinhas, nos deliciávamos com as comidas das barraquinhas voadoras. Dante, meu filho, fazia uma coleção com milhares de conchas, toda vez que íamos. Voltávamos com uma mala de conchinhas. Depois ele as deixava flutuando em seu quarto, como se fossem estrelas.

Uma rodovia especial foi instalada na Serra do Mar, adaptada para veículos que funcionam à base de energia solar. Um sinuoso trajeto cortando a grandiosa floresta e seus desfiladeiros. Pontes e túneis engenhosamente inseridos na paisagem, trazendo maior segurança ao trânsito de animais e pessoas. Agora eu sei, consigo lembrar que fiz parte dos primórdios desse projeto, colaborei no planejamento dessa rodovia.

Por ironia, foi nessa rodovia que tudo aconteceu. As estradas que passamos, que nos transformam, quando olhamos para trás, sempre ficam enevoadas de coincidências, de sincronicidades. Foi ali o local em que se iniciou a jornada que me trouxe até o Atacama.

Era para ser um dia feliz. No rádio do carro tocava uma versão da música "Do Leme ao Pontal", com os vocais de Tim Maia sincronizados a arranjos novos e intrincados. Uma música que fazia nossas mentes vibrarem, que formava ondas de alegria.

Como mencionei, naquele momento eu acreditava que havia nascido no ano de 2285 e que era uma pessoa feliz. Um absurdo e um fato. Minha esposa gargalhava das perguntas do nosso casal de filhos, se cutucando e tagarelando no banco de trás.

Não quero me gabar, mas tive a família perfeita. Pena que não durou muito. Pelo retrovisor eu via os olhos escuros de Julia, a mulatinha mais linda do Brasil. Naquele dia, com cinco anos de idade. Meu filho, Dante, com apenas oito anos era dotado de imensa sensibilidade e coragem.

Aquilo sim era vida. Vocês vão perceber, as coisas costumam ser trágicas para mim.

— Pai, o Dante tá me esmagando — reclamou minha filha.

— Dante, para — falei com firmeza.

Dante se afastou, mas não sem finalizar com um cutucão em Julia. Vi seu sorriso arteiro pelo retrovisor.

Minha esposa, Mariana, suspirou e disse:

— Tomás, férias em uma comunidade praiana é tudo de que precisávamos.

— É bem mais do que preciso, para mim vocês já bastam — falei sorrindo.

Lembro que Mariana passou a mão em meus cabelos e nossos olhares se cruzaram. Nossa! A vida sem eles é um martírio. Naquele momento senti saudades dela, mesmo ela estando ali tão perto. Tive a sensação de ela ser parte de mim, literalmente, talvez meu inconsciente, a maior parte do que sou.

Só de olhar para Mariana as pessoas se intimidavam. Ela tinha uma beleza agressiva. Conquistava as pessoas com facilidade. Os olhos levemente puxados revelavam sua descendência asiática e as curvas de seu corpo confirmavam a brasilidade que fervia em seu sangue.

A morte levou partes de mim naquele dia. Acho que só poderia ser um rascunho feito da dor que sobrou. Minha sobrevivência seria baseada na distração, não podendo vasculhar em mim os detalhes daquelas pessoas, a dor me faria desintegrar. Como estou desintegrando agora, nesse deserto.

Provavelmente depois de tempos, quando a minha memória se desgastasse, como uma velha foto embaçada, é que poderia ter uma vida livre do afogar da saudade. Foi isso que pensei naqueles segundos, um escárnio, porque logo após me esqueci de tudo.

No ano de 2313, acidentes de carro eram raríssimos. Os satélites monitoravam e guiavam os carros por grande parte dos trajetos programados. Não tenho explicação para o que aconteceu.

Quando meus olhos desviaram do paraíso contido nos olhos de Mariana, tudo que vi foi um veículo na contramão. Tomei o controle do carro e desviei da morte. Tive esperança por milésimos de segundo. Depois, o carro deslizou na pista, para o abismo. Meus sonhos e razões despencaram para a imensidão verde da floresta. O som de Tim Maia continuou tocando no rádio. Não existia felicidade nele.


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