1. ENCONTRO MARCADO

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Chile, Deserto do Atacama, ano de 2333.



ESTE É O DESERTO mais alto e mais árido do mundo e me sinto assim agora, depois de tantos feitos e tragédias. Céu azul, nenhuma nuvem, nenhuma gota de água sobrevoando o horizonte. Tudo o que eu quero é uma chance de redenção. Entendo que é necessário caminhar em nossos desertos para se ter uma epifania. Algo que me permita olhar no espelho e não sentir asco.

Sempre quis conhecer o deserto do Atacama. Talvez até tenha conhecido em um passado longínquo. Na minha atual condição não consigo ter tal lembrança. De qualquer maneira, para mim é mais que uma paisagem. Será o palco do momento mais importante da minha vida.

Tenho um encontro marcado há trezentos e vinte e quatro anos e minhas esperanças dependem disso. Vi apenas uma vez a pessoa que irei reencontrar. Ridículo de tão espantoso. Eu mais que todos sei como a realidade pode ser inacreditável.

O calor do deserto envolve montanhas, estradas, planícies de areia e vulcões. A temperatura distorce a visão e aumenta o desejo por vento, velocidade, e isso somado à pressa de conseguir respostas, de vislumbrar uma esperança, faz-me acelerar a moto ao máximo que minha coragem permite.

Sei que devo encontrar uma estrada asfaltada em breve, só que há horas o que tenho é poeira. Sinto náuseas. Em toda parada que fiz acabei vomitando. O gosto amargo me acompanha, a acidez do que regurgitei me queima ainda. Meu corpo sofre com a desidratação. A luz incomoda meus olhos, mas não porque são azuis, sei bem que a cor dos olhos não tem nada a ver com fotofobia. Nem mesmo com a alma, com benevolência. Qualquer olho se incomodaria com tanta branquidão, com tanto reflexo. Meu único alento vem da minha boa porcentagem de melanina, uma proteção contra o sol impiedoso.

Para atingir este momento tive surpreendentes revelações. Enfrentei uma jornada em busca de lembranças. Tenho boa parte do quebra-cabeça da minha vida montado. Faltam as últimas peças. Que em breve terei.

Irei recapitular o que passei nos últimos meses, em que uma enxurrada de memórias, cronologicamente desconexas, de um passado remoto, me foi revelada.

Diferente do que se possa pensar, para se ter acesso a esse meu relato, não será preciso retirar a "caixa-preta" do meu cérebro, não terão de mexer nos meus miolos, na minha massa cinzenta, no meu lobo parietal, no meu cerebelo. Nenhum pensamento precisa ficar preso nos crânios. Já existe tecnologia para transformar pensamentos em texto mental, editá-los, lapidá-los e enviá-los ao vento. Alguns saberão sobre minha jornada, receberão a mensagem.

Talvez alguém com talentos literários escreva um livro ou até pode ser que façam um filme holográfico. Creio que em alguns anos essa narração poderá viajar no tempo, ser conhecida por pessoas do passado. É justamente para essas que tenho interesse que ela chegue. Quem for do passado achará ainda mais insólito.

Viver no deserto é complicado, poucas espécies se adaptaram. Milhões de anos foram necessários para se ter os seres que habitam aqui. Por isso, faz todo sentido que este fatídico encontro seja nessa aridez. Ao final da minha narrativa vocês vão entender por que digo isso.

Não conheço bem o homem que irei reencontrar. Ele esculpiu minha vida. Acredito ser a pessoa que trará coerência às minhas memórias. Preparem-se, em muitos aspectos o que vou contar será estranho, não linear. Foi assim que tudo me veio. Existe algo linear nos pensamentos, alguma retidão em todo o trabalho de nossas sinapses? Ainda não digeri por completo o que essas lembranças me passaram, é atordoante. Acho metodologicamente apropriado contar seguindo a ordem vivenciada.

Meu registro vai soar como uma mentira deslavada. Não tem como ser diferente. Talvez o que reste é sorrir da piada que uma vida pode ser.

Para começar, apesar de minha idade avançada (tenho mais de trezentos anos), meu corpo se assemelha a alguém de 48 anos, e, diante das circunstâncias, apresento uma saúde resistente. Eu falei que seria estranho. Fato importante sobre mim: tenho culpa pelo mundo ser o que é hoje. Ele, no ano 2333, não é ruim, é paradisíaco e justo com a população. No entanto, algo de ruim se esconde no paraíso. Por isso esta viagem é necessária.

Um poema reflexivo me vem à mente. Não lembro quando eu o li pela primeira vez. Acabei decorando-o. Ele tem a essência da minha extensa vida.

Se dependesse de mim, não existiria guerra, nem maldade, nem fome...

Se dependesse de mim, não existiria criança triste, nem doentes, nem dor...

Se dependesse de mim, não existiria a velhice, a decadência física, a morte do corpo...

Se dependesse de mim, tudo seria bondade, carinho, felicidade...

Meu Deus! Será que sou melhor que Tu?

(Gislaine Canales)

(Gislaine Canales)

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